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Saturday, September 15, 2007

DICIONÁRIO FILOSÓFICO VOLTAIRE C

CADEIA DOS ACONTECIMENTOS

Há muito que se crêem os acontecimentos encadeados uns aos outros por invencível fatalidade – o Destino – que é em Homero superior ao próprio Júpiter. Sem refolhos confessava o soberano dos deuses e dos homens não poder impedir que seu filho Sarpédon morresse no prazo preestabelecido. No momento em que devia nascer Sarpédon nascera, nem poderia deixar de ser assim. Não podia morrer em outro lugar senão diante de Tróia. Não podia ser enterrado senão em Lícia. Seu corpo, no prazo preestabelecido, produziria legumes que se transmudariam em substância de alguns licienses. Seus herdeiros haveriam de estabelecer nova ordem em seus estados. Essa nova ordem influiria nos reinos vizinhos. Do que resultariam novas disposições de guerra e paz com os vizinhos dos vizinhos de Licia. E assim sucessivamente o destino da terra dependeu da morte de Sarpédon, a qual dependeu de outro acontecimento, que por seu turno se ata por intermédio de outros à origem das coisas.
Tivesse um único desses fatos acontecido diferentemente, outro fora o mundo. Ora, impossível que o mundo atual existisse e não existisse ao mesmo tempo: portanto impossível fora a Júpiter salvar a vida do filho, por muito Júpiter que fosse.
Diz-se que este sistema da necessidade e fatalidade inventou-o Leibnitz em nossos dias, chamando-lhe razão suficiente. Entretanto é antiquíssimo. Não é de hoje que não há efeito sem causa e que muitas vezes a mais insignificante das causas produz os maiores efeitos.
Conta o sr. Bolingbroke que lhe proporcionaram ocasião de concertar o tratado particular da rainha Ana com Luís XIV as questiúnculas da sra. Marlborough e da sra. Masham. Esse tratado conduziu à paz de Utrecht. A paz de Utrecht firmou Filipe V no trono de Espanha. Filipe V conquistou Nápoles e Sicília à frente da casa da Áustria. Deve o príncipe que é atualmente rei de Nápoles seu trono à sra Masbam. Não o seria, talvez nem existisse, se a duquesa de Marlborough tivesse sido mais complacente para com a rainha de Inglaterra. Sua existência dependia em Nápoles de uma tolice a mais ou a menos na corte londrina. Examinai a situação de todos os povos do mundo: é o que é por força de uma série de acontecimentos aparentemente insulados, porém realmente baraçados em íntimo emaranhamento. São tudo rodagens, polés, cabos, molas dessa máquina colossal.
O mesmo sucede na ordem física. Um vento que sopre do fundo da África ou dos mares austrais acarreta parte da atmosfera africana que recai em chuva nos declívios dos Alpes. Essas chuvas fecundam nossas terras. Nosso vento do norte, por sua vez, leva nossos vapores daqui para o continente negro. Nós beneficiamos a Guiné e a Guiné nos beneficia. A cadeia se estende de cabo a cabo do mundo.
Parece-me contudo abusar-se demais desse princípio. Conclui-se não haver e mais ínfimo átomo que não tenha influído na disposição atual do mundo inteiro. Que não há o menor acidente, quer entre os homens, quer entre os animais, que não seja anel essencial da grande cadeia do destino.
Entendo eu: todo efeito tem evidentemente sua causa, remontante de causa em causa até o abismo da eternidade. Mas nem toda causa transmite seu efeito até o fim dos séculos. Todo acontecimento decorre um de outro, admito. O presente sai do passado. O futuro sairá do presente. Tudo tem pai. Mas nem tudo tem filhos. Precisamente como numa árvore genealógica: toda família remonta, como é sabido, a Adão, mas na família muitos indivíduos morrem sem deixar posteridade.
Existe uma árvore genealógica dos acontecimentos. Incontestavelmente os habitantes das Gálias e de Espanha descendem de Gomer e os russos de Magogue, seu irmão mais novo: encontra-se esta genealogia em tantos livros maçudos! Nesse pé, não há negar devermos a Magogue os sessenta mil russos em armas hoje às portas da Pomerânia e os sessenta mil franceses que combatem nas abas de Francfort. Mas que Magogue haja expectorado à direita ou à esquerda ao pé do Cáucaso, tenha dado duas ou três voltas em redor de um poço, haja dormido do lado esquerdo ou direito, não vejo como possa isso ter influído capitalmente na resolução tomada pela imperatriz da Rússia Elizabete de enviar um exército em socorro da imperatriz romana Maria Teresa. Que meu cão sonhe ou não quando dorme, não percebo que relação poderá ter tão importante fato com os negócios do grão mogol.
É necessário atentar em que nem tudo é cheio na natureza e que nem todo movimento se transmite consecutivamente até descrever a volta ao mundo. Lance-se n’água um corpo de mesma densidade. Facilmente se compreenderá que ao cabo de algum tempo assim o movimento do corpo como aquele que comunicou à água se extinguem. O movimento consome-se e repara-se. Por conseguinte o movimento que possa ter produzido Magogue escarrando num poço não pode ter influência no que hoje se passa. na Rússia e na Prússia. Nem todos os acontecimentos pretéritos são pais dos acontecimentos presentes. Todo acontecimento atual provém em linhas diretas do passado. Porém milhares de linhas colaterais há que em nada os interessam. Repitamos: tudo tem pai, mas nem tudo tem filhos. Retornaremos ao assunto ao falar do Destino.
CARÁTER

A palavra grega impressão, gravura. É o que em nós gravou a natureza. Podemos apagá-lo? Transcendental questão. Se tenho o nariz de esconso e olhos de gato, posso escondê-los sob uma máscara. Poderei encobrir melhor o caráter?
Apresenta-se perante Francisco I de França, a fim de queixar-se de uma preterição, um indivíduo de natural violento e impetuoso. O semblante do príncipe, a postura respeitosa dos cortesãos, o local mesmo impressionam-no fundamente. Maquinalmente baixa os olhos, a voz rude se abranda e faz o pedido humildemente. Crer-se-ia nascido tão manso quanto os cortesãos em meio dos quais parece quase desconsertado. Entretanto facilmente descobre Francisco I em seus olhos baixos, porém acesos de um fogo sombrio, nos músculos retesos do rosto, nos lábios contracerrados, que esse homem não é tão humilde como aparenta. Esse homem acompanha-o a Pávia, é aprisionado com ele e com ele levado para Madri. Já não lhe infunde a mesma impressão a majestade do rei. Familiariza-se com o objeto de seu respeito. Um dia, ao descalçar-lhe as botas, e fazendo-o desleixadamente, Francisco, azedado pelo infortúnio, ralha-lhe. Nosso homem manda o rei plantar batatas e atira as botas pela janela.
Nascera Sixto Quinto petulante, opiniático, soberbo, impetuoso, vingativo, arrogante. As provas do noviciado parecem ter-lhe adoçado o caráter. Mal começa a desfrutar de certo crédito em sua ordem, lança-se contra um guardião e alomba-o a punhadas. Inquisidor em Veneza, exerce o cargo com insolência. Cardeal, é possuído della rabbia papale. Embuça na obscuridade sua pessoa e seu caráter. Mascara-se de humilde e moribundo. Elegem-no papa: é quando dá à mola do natural toda a elasticidade longo tempo retesada pela política. É o mais arrogante e despótico dos soberanos.

Naturam expellas furca, tamen usque recurret.

Religião, moral, são freios retentores do caráter. Não podem, porém, matá-lo. Enclausurado, reduzido a dois dedos de sidra às refeições, pode o bêbedo deixar de embriagar-se, mas ansiará sempre pelo vinho.
A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma árvore que não dá senão um ou outro fruto abastardado, mas sempre da mesma natureza. Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha. Jamais deixará de ser carvalho ou pereira, porém. Se fosse possível alterar o caráter, a gente mesmo o plasmaria a bel prazer, seria senhor da natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não recebemos tudo? Experimentai animar o indolente de contínua atividade, inspirar gosto à musica a quem careça de gosto e de ouvido. Não tereis melhor resultado do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença. Nós aperfeiçoamos, esborcelamos, embuçamos o que nos estereogravou a natureza. Não há, porém, alterar-lhe a obra.
Direis a um criador: – O Sr. tem peixe demais nesse viveiro; assim eles não vingam. Seus campos estão sobrelotados de gado; o capim não dá, os animais emagrecerão. – Com isso deixa o nosso homem que as solhas lhe comam metade das carpas, e os lobos metade dos carneiros. Os restantes engordam. Gabar-se-á ele dessa economia? Este camponês és tu mesmo. Uma de tuas paixões devorou as outras, e tu julgas haver triunfado sobre ti próprio. Não parecemos quase todos nós com aquele velho general de noventa anos que, encontrando alguns jovens oficiais mexendo com umas moças, perguntou-lhes colérico: “Senhores, é esse o exemplo que lhes dou?”.
CATECISMO CHINÊS

(Ou diálogos de Cu Su, discípulo de Cong-fu-tseu, com o príncipe Cu, filho do rei de Lou, tributário do imperador çhinês Gnenvã, 417 anos antes da nossa era. Traduzido em latim pelo padre Fouquet ex-jesuíta. Encontra-se o manuscrito na biblioteca do Vaticano, número 42.759).

C.
Que devo entender quando me dizem que adore o céu (Chang ti)?
C. S.
Não se trata do céu material que vemos, que não é outra coisa senão ar, composição de todas as emanações da terra. Imenso disparate seria adorar vapores.
C.
Pois não me surpreenderia. Parece-me que os homens cometeram disparates ainda maiores.
C. S.
De fato. Mas vós estais destinado a governar. Cumpre-vos ser sábio.
C.
Há tantos povos que adoram o céu e os planetas!
C. S.
Os planetas não passam de mundos como o nosso. Temos tanto motivo para adorar a areia e o barro da Lua, por exemplo, como a Lua para se pôr de joelhos diante da areia e do barro da Terra.
C.
Que se quer dizer quando se fala: O céu e a terra, acenda ao céu, seja digno do céu?
C. S.
Diz-se tremenda asneira. Não existe céu: cada planeta é circundado como que de uma casca chamada atmosfera, e gira no espaço em torno de seu sol. Cada sol é centro de porção de planetas que o acompanham espaço em fora. Não existe alto nem baixo, subida nem descida. Compreendeis que se habitantes da Lua dissessem que se sobe para a Terra, que era preciso tornar-se digno da Terra, diriam um absurdo. Da mesma forma proferimos uma frase sem nexo quando dizemos ser necessário fazer-se digno do céu. É como se disséssemos: é preciso tornar-se digno do ar, digno da constelação do Dragão, digno do espaço.
C.
Creio compreender. Devemos adorar somente o Deus que criou o céu e a terra.
C. S.
Isso! Só Deus merece ser adorado. Mas quando dizemos que Deus fez o céu e a terra, piamente proferimos uma grande ingenuidade. Porque, se por céu entendemos o espaço portentoso em que Deus acendeu tantos sóis e fez girar tantos mundos, é mais ridículo dizer o céu o a terra do que dizer as montanhas e um grão de areia. Infinitamente menor que um grão de areia é o nosso globo perto desses quintilhões de mundos, em meio aos quais desaparecemos. Tudo o que podemos fazer é juntar nossa débil voz ao coro dos seres incontáveis que no abismo da amplidão rendem homenagem a Deus.
C.
Então enganaram-nos quando nos disseram que Fo desceu do quarto céu e se nos apresentou sob a forma de um elefante branco?
C. S.
Isso são histórias que os bonzos contam às crianças e aos velhos. Não devemos adorar senão o autor eterno de todos os seres.
C.
Mas como pôde um ser fazer os outros?
C. S.
Olhai aquela estrela – Acha-se a um trilhão e quinhentos bilhões de lis(12)do nosso minúsculo globo. Dela projetam-se raios que vêm formar em nossos olhos dois ângulos iguais pelo vértice. Os mesmos ângulos formam nos olhos de todos os animais. Não vedes nisso um desígnio evidente? Não vedes nisso uma lei admirável? Ora, quem faz uma obra senão um obreiro? Quem elabora leis senão um legislador? Existe pois um obreiro, um legislador eterno.
C.
Mas quem fez esse obreiro? Como é ele?
C. S.
Meu príncipe, passeando ontem pelos arredores do palácio mandado construir pelo rei vosso pai, ouvi dois grilos conversando, um dos quais dizia: – Que palácio formidável! – Sim, – disse o outro – com toda a minha presunção confesso que deve ser alguém mais poderoso que os grilos o autor de tal prodígio. Mas nem imagino quem seja. Vejo que há de existir, mas não sei quem é.
C.
Confesso serdes um grilo mais entendido que eu. O que me agrada em vós é não pretenderdes saber o que ignorais.

Segundo diálogo

C. S.
Então convindes haja um ser todo poderoso, existente por si próprio, supremo artesão de toda a natureza?
C.
Sim. Mas se existe por si mesmo nada pode demarcá-lo, está em toda parte. Acha-se então em toda a matéria, em todas as partes de mim mesmo?
C. S.
Por que não?
C.
Nesse caso eu próprio seria parte da divindade.
C. S.
Não me parece certa a conclusão. Este caco de vidro é de todos os lados penetrado pela luz. Entanto será ele luz? Não; é simplesmente areia. Tudo está em Deus, não resta dúvida: o que tudo anima em tudo deve estar. Deus não é como o imperador da China, que mora em um palácio e transmite suas ordens por calao. Desde que exista, necessário é que sua existência encha todo o espaço e todas as suas obras. E já que está em vós é uma advertência contínua para que nada façais que vos possa envergonhar em sua presença.
C.
Que fazer para ousar olhar-se a si mesmo sem repugnância e sem pejo diante do ser supremo?
C. S.
Ser justo.
C.
Que mais?
C. S.
Ser justo.
C.
Mas diz a seita de Lao Quium não existir justiça nem injustiça, vício nem virtude.
C. S.
Diz a seita de Lao Quium não existir saúde nem doença?
C.
Não, ela não diria tamanho absurdo.
C. S.
Absurdo tão grande e mais funesto é pensar não existir saúde nem moléstia da alma, virtude nem vício. Os que disseram ser tudo a mesma coisa são monstros. Será a mesma coisa criar o filho ou esmagá-lo em cima de uma pedra? Assistir à mãe ou cravar-lhe um punhal no coração?
C.
Fazeis-me estremecer. Eu execro a seita de Lao Quium. Mas são tantos os matizes do justo e do injusto! As vezes fica-se perplexo. Quem saberá precisamente o que é permitido e o que não o é? Quem será capaz de estabelecer seguramente as fronteiras que separam o bem do mal? Que norma me dais para discerni-los?
C. S.
As normas de Cong-fu-tseu, meu mestre: “Vive como ao morrer desejarias ter vivido. Trata o próximo como queres que ele te trate”.
C.
Confesso que tais máximas devem ser o código do gênero humano. Mas que me importará ao morrer ter bem vivido? Que ganharei com isso? Acaso, ao se quebrar, se sentirá feliz aquele relógio por haver bem soado as horas?
C. S.
Aquele relógio não sente, não pensa Não pode ter remorsos, ao passo que vós os tendes quando vos sentis culpado.
C.
E se, após cometer muitos crimes, vier a não mais os sentir?
C. S.
Nesse caso seria preciso reprimir-vos. E ficai certo que entre os homens que não gostam de ser oprimidos alguém haveria que vos tolheria as mãos.
C.
Quer dizer que Deus, que está neles, consentiria que fossem maus depois de tê-lo permitido a mim?
C. S.
Deus vos galardoou com a razão: que dela não abuseis nem vós nem eles. Não somente seríeis infeliz nesta vida, como ainda quem vos disse não o seríeis em outra?
C.
Quem vos disse existir outra vida?
C. S.
Na dúvida, procedei como se existisse.
C.
Se eu tivesse certeza de que não existe?
C. S.
Desafio-vos.

Terceiro diálogo

C.
Mas para poder ser punido ou recompensado quando deixar de existir, forçoso é que subsista em mim algo que sinta e que pense. Ora, se antes de nascer nada de mim havia que sentisse ou pensasse, como haverá depois que morrer? Que poderia ser essa parte inconceptível de mim mesmo? Subsistirá o zumbido daquela abelha à sua morte? Subsistirá a vegetação desta planta a seu desarraigamento? Vegetação não é uma palavra de que nos servimos para exprimir a maneira inexplicável como quis o Ser Supremo que a planta absorvesse os sucos da terra? Tal e qual, alma é uma palavra inventada para exprimir pobremente e obscuramente os princípios essenciais da vida humana. Todos os animais se movem. A esse poder de mover-se chamamos força ativa. Mas não existe um ser distinto – força ativa. Temos paixões, memória, razão. Porém razão, memória, paixões não são, é claro, coisas a parte. Não são seres em nós existentes. Não são indivíduos de existência própria: são termos genéricos por nós inventados para expressarmos nossas idéias. Alma – memória, razão, paixões – não passa pois de uma palavra. Quem anima a natureza de movimento? Deus. Quem faz vegetar as plantas? Deus. Quem dá vida aos animais? Deus. Quem gera o pensamento humano? Deus.
Se a alma humana fosse um anãozinho que habitasse o nosso corpo, governando-nos os movimentos e as idéias, não denotaria isso impotência e artifício indignos do eterno artesão do mundo? Não seria ele capaz de fazer átomos por si próprios dotados de movimento e pensamento? Ensinastes-me grego, fizestes-me ler Homero. Reputo Vulcano um ferreiro divino quando faz trípodas de ouro que se apresentam sozinhas perante o conselho dos deuses. Vil charlatão parecer-me-ia porém se houvesse escondido no corpo das trípodas um moleque que, sem que ninguém percebesse, as fizesse mover-se.
Criaram frios sonhadores a fantasia de atribuir o movimento dos astros a gênios que incessantemente os impelissem espaço em fora. Mas Deus não poderia ver-se reduzido a tão mísero recurso. Em uma palavra, para que duas molas quando basta uma? Não ousareis negar tenha Deus o poder de animar o ente pouco conhecido a que chamamos matéria. Por que então haveria de recorrer a outro agente?
Mais: que seria essa alma que tão liberalmente dais ao nosso corpo? De onde veio? Quando? Seria preciso plantar-se tempo sem tempo o Criador do universo a coca da união de homem e mulher, observando atentamente o instante em que saísse um germe do corpo do homem e entrasse no corpo da mulher para então enviar-lhe às pressas uma alma? E se o germe morresse, que seria da alma? Teria sido criada inutilmente, ou esperaria outra oportunidade.
Estranha ocupação para o senhor do mundo. Tanto mais que não se veria abarbado apenas com as cópulas da espécie humana: precisaria ter olhos para a reprodução de todos os animais, porque todos os animais têm memória, idéias, paixões. E se para criar sentimentos, memória, idéias, paixões fosse necessária uma alma, cumpriria a Deus afanar-se incessantemente a forjar almas para elefantes, pulgas, mochos, peixes, bonzos.
Que idéia teríeis do arquiteto de tantos milhões de mundos apeado a fazer cavilhas invisíveis da manhã à noite a fim de perpetuar sua obra?
Aí tendes ínfima parte das razões que me fazem duvidar da existência da alma.
C. S.
Raciocinais de boa fé. E vosso sincero parecer, errôneo embora, há de ser grato ao Ser Supremo. Podeis enganar-vos, mas não o procurais. Sois, pois, desculpável. Mas vede que não me propusestes senão dúvidas, e dúvidas tristes. Admiti verossimilhanças mais consoladoras. É duro ser aniquilado; esperai viver. Sabeis que um pensamento não é matéria, nada tem que ver com a matéria: por que há de ser tão difícil crerdes que Deus vos haja inoculado um princípio divino que – indissolúvel – escape é morte? Ousareis dizer impossível terdes uma alma? Não, certamente. E sendo possível, não será muito provável? Enjeitareis um sistema tão belo e tão necessário ao gênero humano? Por somenos impedimentos?
C.
Grato ser-me-ia abraçar tal sistema, de vez que me fosse provado. Não sou. senhor de ver o que não enxergo. Sempre me impressionou a idéia grandiosa de que Deus tudo criou, em tudo está, tudo penetra, a tudo inspira vida e movimento. E se, estando em toda a natureza, se acha em todas as partículas do meu ser, não vejo que necessidade tenho de uma alma. Para que um pequeno ente subalterno, quando sou animado do próprio Deus? De que me serviria essa alma? Nossas próprias idéias, não somos nós quem as elaboramos: acodem-nos não raro a despeito de nós mesmos; temo-las enquanto dormimos. Tudo em nós se opera sem a nossa intervenção. Por mais que a alma dissesse ao sangue e aos espíritos animais: Circulai, peço-vos, de tal ou tal maneira, eles circulariam eternamente e impassivelmente da forma que Deus lhes ditou. Prefiro ser máquina de um Deus que se me evidencia a sê-la de uma alma de cuja existência duvido.
C. S.
Pois bem! Se vos anima o próprio Deus, nunca profaneis com crimes a sua presença. E se vos deu uma alma, que essa alma jamais o ofenda. Num sistema como noutro tendes vontade. Sois livre, dispondes do poder de fazer o que quiserdes; usai desse poder para servir a Deus que vo-lo outorgou. Bom é que sejais filósofo: necessário que sejais justo. Sê-lo-eis ainda mais quando crerdes possuir uma alma imortal.
Dignai-vos responder-me: não é verdade ser Deus a suma justiça?
C.
Sem dúvida. E ainda que fosse possível deixar de sê-la (o que é uma blasfêmia) eu mesmo quereria proceder com eqüidade.
C. S.
Quando estiverdes no trono, não é verdade ser vosso dever recompensar as ações virtuosas e punir as culposas? Quereríeis que Deus não fizesse o que vós mesmo fareis? Sabeis que há e sempre haverá nesta vida virtudes infelizes e crimes impunes. Necessário é pois que bem e mal encontrem seu julgamento em outra existência. Foi esta idéia tão simples, tão natural, tão geral que gerou em tantas nações a crença da imortalidade da alma e da justiça divina, que a julgará quando se despir do despojo mortal. Haverá sistema mais razoável, mais conforme à Divindade e mais útil ao gênero humano?
C.
Por que então muitas nações não o abraçaram? Sabeis haver em nossa província coisa de duzentas famílias de antigos sinús(13) que habitaram outrora parte da Arábia Pétrea. Pois nem eles nem seus avitos jamais creram a alma imortal. Têm seus Cinco Livros, como nós temos nossos Cinco Quings(14). Li-lhes a tradução; suas leis, necessariamente semelhantes às de todos os outros povos, ordenam-lhes respeitar os pais, não furtar, não mentir, não cometer o adultério nem o homicídio. Não lhes falam, porém, de recompensas e castigos em outra vida.
C. S.
Se essa idéia ainda não se desenvolveu nesse pobre povo, desenvolver-se-á sem dúvida algum dia. Demais, que nos importa uma insignificante e miserável nação quando babilônios, egípcios, hindus, todos os povos civilizados admitiram esse dogma tão salutar? Se estivésseis doente, refugaríeis um remédio aprovado por todos os chineses só porque meia dúzia de bárbaros das montanhas não o tomariam? Deus concedeu-vos a razão, e diz-vos a razão que a alma deve ser imortal. É o próprio Deus que vo-lo diz, portanto.
C.
Mas como poderei ser recompensado ou punido quando já não for eu mesmo, quando nada existir do que constitui a minha pessoa? Tão somente por força da memória é que sou sempre eu mesmo. Ora, a memória, perdê-la-ei na derradeira doença. Haverá então um milagre depois de minha morte que ma restitua, para que eu retorne à existência?
C. S.
Nesse caso um príncipe que houvesse decapitado a família para reinar, tiranizado os súditos, eximir-se-ia de culpa dizendo a Deus: – Não fui eu, eu perdi a memória, vós vos equivocais, eu já não sou a mesma pessoa. – Julgais que Deus se daria por achado com semelhante sofisma?
C.
Pois bem. Seja, rendo-me. Se praticaria o bem por mim próprio, fá-lo-ei igualmente para comprazer ao Ser Supremo. Eu pensava bastar minha alma ser justa nesta vida para ser feliz em outra. Vejo que tal opinião é boa para os povos e para os príncipes, mas o culto de Deus me preocupa.

Quarto diálogo

C. S.
Que achais de esquisito em nosso Chu Quing, esse primeiro livro canônico tão respeitado por todos os imperadores chineses? Para servir de exemplo ao povo trabalhais um campo com as próprias mãos reais e dele ofertais as primícias a Chang-ti, a Tien, ao Ser Supremo. A ele sacrificais quatro vezes ao ano. Sois rei e pontífice. Prometeis a Deus todo o bem que estiver em vosso poder. Não há nisso algo que repugne?
C.
Sei que Deus não tem nenhuma necessidade de nossos sacrifícios e de nossas preces. Nós é que temos precisão de nos sacrificarmos e de orar. O culto de Deus não foi estabelecido por ele, mas por nós. Muito me apraz orar, e quero sobretudo que minhas orações não sejam ridículas. Porque se me ponho a gritar que “a montanha do Chang-ti é uma montanha gorda, é que não se deve olhar para as montanhas gordas,” (15) e faço fugir o Sol e apagar a Lua, seriam essas algarvias do agrado do Ser Supremo, úteis a meus súdito e a mim mesmo?
Não suporto principalmente a demência das seitas. De um lado vejo Lao Tseu concebido pela união do céu e da terra e cuja mãe o carregou no ventre durante oitenta anos. Não tenho mais fé em sua doutrina do aniquilamento e da renúncia universal que nos cabelos brancos com que nasceu ou na vaca preta que montou para ir pregar sua doutrina.
Não creio mais no deus Fo, ainda que tenha tido por pai um elefante branco e prometa a vida eterna.
Mais que tudo me desagrada serem tais fantasias continuamente pregadas pelos bonzos, que seduzem o povo para governá-lo. Fazem-se respeitáveis por mortificações que repugnam à natureza. Uns se privam toda a vida dos alimentos mais salutares, como se não se pudesse agradar a Deus senão com um mau regime. Outros põem argolas de ferro no pescoço, o que por vezes lhes dá um ar digníssimo. Enterram cravos nas coxas, como se fossem tábuas. E o povo segue-os em chusma. Se um rei decreta um édito que os desagrada, dizem-vos friamente que tal édito não se encontra no comentário do deus Fo, e que mais vale obedecer a Deus que aos homens. Como remediar tão extravagante e nociva doença popular? Sabeis ser a tolerância o princípio do governo da China como de todos os povos da Ásia. Não vos parece, porém, funesta semelhante indulgência, quando expõe um império a ser transtornado por opiniões fanáticas?
C. S.
Que o Chang-ti me livre de querer desenvolver em vós o espírito de tolerância, virtude tão respeitável, que é para a alma o que é para o corpo a liberdade de saciar a fome. Permite a lei natural a cada um crer o que quiser, como se alimentar do que bem entender. O médico não pode matar os clientes por não terem observado a dieta prescrita. Não assiste ao príncipe o direito de mandar prender os súdito que não pensarem como ele. Mas cumpre-lhe prevenir perturbações, e se for sábio, facílimo lhe será extirpar as superstições. Sabeis o que se passou com Daão, sexto rei da Caldéia, há cerca de quatro mil anos?
C.
Não. Dar-me-eis prazer contando-mo.
C. S.
Os sacerdotes caldeus adoravam as solhas do Eufrates. Diziam que uma solha memorável – Oanés – ensinara-lhes outrora a teologia, que essa solha era imortal, tinha três pés de comprido e um pequeno crescente na cauda. Por amor de Oanés era proibido comer solhas. Levantou-se grande barulho entre os teólogos a fim de saber se a solha Oanés era macho ou fêmea Os dois partidos se excomungaram reciprocamente e por não poucas vezes chegou-se a vias de fato. Eis o que fez o rei Daão para pôr termo à referta.
Ordenou a ambas as facções um rigoroso jejum de três dias, findo o qual chamou à sua presença os partidários da solha fêmea, que assistiram a seu jantar. Mandou trazer uma solha de três pês de comprimento, em cuja cauda fizera desenhar um crescente.
— É este o vosso deus? – perguntou aos doutores.
— Sim, majestade. Tem o crescente na cauda e seguramente há de ter ovas.
Ordenou o rei que se abrisse a solha, que se evidenciou macho.
—.Estais vendo não ser o vosso deus, pois não tem ovas, – concluiu o rei. E comeu-a com seus sátrapas, com grande regozijo dos teólogos das ovas, que viam frito o deus dos adversários.
Em seguida mandou virem os doutores do outro partido. Mostrou-lhes um deus de três pés de longo, com um crescente na cauda e que tinha ovas. Afirmaram os doutores ser o deus Oanés, e que era macho. Como da primeira vez, o rei mandou fritá-lo e viu-se que era fêmea. Então, evidenciando-se ambos os partidos igualmente tolos, e como não tivessem almoçado, disse-lhes o bom rei Daão que não tinha senão solhas para dar-lhes de jantar. E os doutores comeram-nas gulosamente, fossem fêmeas ou machos. Terminou a guerra civil, todos bendisseram o rei e de então em diante toda gente fez servir à mesa quantas solhas lhe aprouvesse.
C.
Muito simpatizo com o rei Daão. Prometo imitá-lo na primeira ocasião que se apresentar. Sem violências, hei de impedir o quanto possa que se adorem Fos e solhas.
Sei que existem em Pegú e Tonquim pequenos deuses e talapões que dizem fazer baixar a lua no minguante e predizer claramente o futuro, isto é, verdadeiramente o que não existe, porque o futuro não existe. No que de mim depender, vedarei aos talapões virem ao meu império inventar o futuro e arriar à lua.
Que humilhação haver seitas que vão de cidade em cidade a propagar seus mitos, como charlatães vendendo suas drogas! Que opróbrio para o espírito humano presumirem naçõezinhas insignificantes ser a verdade exclusividade sua, e que o vasto império da China chafurde no erro! Então não seria o Ser Supremo senão o deus da ilha Formosa ou de Bornéu? Abandonaria o resto do mundo ? Meu caro Cu Su, ele é o pai de todos os homens. A todos permite comer solhas. Ser virtuoso é a mais digna homenagem que se lhe possa render. Um coração puro é o mais sublime dos templos, como dizia o grande imperador Hiao.

Quinto diálogo

C. S.
De vez que amais a virtude, como a praticareis quando fordes rei?
Não sendo injusto nem para com meus vizinhos nem para com meu povo.
C. S.
Não basta não fazer o mal. Devereis praticar o bem. Dareis o que comer aos pobres empregando-os em trabalhos úteis, e não presenteando-os com a ociosidade. Embelezareis as estradas reais, abrireis canais, construireis edifícios públicos, estimulareis as artes, premiareis o mérito em que quer que se manifeste, perdoareis as faltas involuntárias.
C.
A isso chamo não ser injusto. Trata-se de deveres.
C. S.
Pensais como verdadeiro rei. Mas há o rei e o homem, a vida pública e a vida privada. Logo vos casareis. Quantas esposas contais ter?
C.
Tenho que uma dúzia será o suficiente. Mais poderia furtar-me ao trabalho. Não gosto desses reis que têm trezentas esposas e setecentas concubinas, e milhares de eunucos para servi-las. Essa mania de eunucos sobretudo parece-me um tremendo ultraje à natureza humana. Que se capem, quando muito, os galos. Com isso ficam melhores de comer. Nunca se viram, porém, eunucos na panela. Para que mutilá-los? Tem o dalai lama cinqüenta eunucos para cantarem em seu pagode. Gostaria de saber se é grato ao Chang-ti ouvir as vozes de taquara rachada desses cinqüenta desmembrados.
Acho também muito ridículos esses bonzos que não se casam. Gabam-se de ser mais sábios que os demais chineses. Pois bem! Que façam então filhos sábios. Boa moda essa honrar o Chang-ti privando-o de adoradores! Singular maneira de servir o gênero humano, dando-lhe o exemplo da própria extinção! Dizia o bom pequeno lama Stelca ed isant Errepi (16) que todo padre devia fazer o maior número de filhos possível. Ele próprio dava o exemplo e foi muito útil em seu tempo. Por mim casarei todos os lamas e bonzos e lamizas e bonzas que tiverem vocação para esta santa obra. Serão melhores cidadãos, e com isso creio prestar grande benefício ao reino de Lou.
C. S.
Oh que excelente príncipe teremos! Fazeis-me chorar de alegria. Mas certamente não tereis só mulheres e súdito. Porque afinal não se pode passar a vida a lavrar éditos e fabricar filhos. Sem dúvida tereis amigos?
C.
Já os tenho, e bons. Advertem-me de meus defeitos e eu tomo a liberdade de apontar-lhes os seus. Consola-me e eu os consolo. A amizade é o bálsamo da vida, bálsamo superior ao do químico Erueil (17) e até aos saquetes do grande Ranoud (18). Admira-me não se haver feito da amizade um preceito de religião. Desejaria inseri-lo em nosso ritual.
C. S.
Preservai-vos de semelhante arbitrariedade. A amizade já é sagrada por si mesma. Nunca a forceis. O coração precisa ser livre. Se fizésseis da amizade um preceito, um mistério, um rito, uma cerimônia, milhares de bonzos, pregando e escrevendo suas tolices, cobririam esse sentimento de ridículo. Não deveis expô-lo a semelhante profanação.
Mas como procedereis em relação aos vossos inimigos? Vinte vezes recomenda Cong-fu-tseu que os amemos. Não vos parece um pouco difícil?
C.
Amar os próprios inimigos? Se é tão comum!
C. S.
Como o entendeis?
C.
Como é de mister, creio; Fiz o aprendizado da guerra sob o príncipe de Décon (19) contra o príncipe de Vis Brunck. Quando um inimigo era ferido e caía em nossas mãos; tratávamo-lo como se fosse nosso irmão. Muitas vezes demos o próprio leito a inimigos feridos e prisioneiros, dormindo-lhes ao pé sobre peles de tigre estendidas no chão. Servíamo-los nós mesmos. Que mais quereríeis? Que os amássemos como se ama às amantes?
C. S.
Muito me edifica tudo o que dissestes, e desejaria que todas as nações vos compreendessem. Porque me afirmam haver povos assaz impertinentes para dizer que nós não conhecemos a verdadeira virtude, que nossas boas ações não passam de pecados esplêndidos, que necessitamos das lições de seus talapões para que nos ensinem bons princípios. Coitados! Mal aprenderam a ler e escrever e já querem ensinar aos próprios mestres!

Sexto diálogo

C. S.
Não vos repetirei todos os lugares comuns que há cinco ou seis mil anos se repisam entre nós acerca de todas as virtudes. Há virtudes que não o são senão para nós mesmos, como a prudência para guiar a alma, a temperança para governar o corpo – meros preceitos de política e higiene. Verdadeiras virtudes são as virtudes úteis à sociedade: fidelidade, magnanimidade, beneficência, tolerância, etc. Graças aos céus não há avó entre nós que não ensine aos netos todas essas virtudes. Elas constituem o cimento da nossa juventude, na cidade como na aldeia. Há contudo uma grande virtude que começa a ser esquecida, o que é deplorável.
C.
Qual é? Vamos, dizei-me, eu tomarei a peito realentá-la.
C. S.
A hospitalidade. Essa virtude tão social, esse sagrado liame entre os homens, que começa a relaxar-se desde que temos tavernas. Ao que dizem, veio-nos essa perniciosa instituição de certos selvagens do Ocidente. Parece que esses miseráveis não têm casas para acolher os viajores. Que prazer receber na grande cidade de Lou, na linda praça de Honchã, na casa de Qui, um generoso estrangeiro recém chegado de Samarcande, para quem me tornaria de então em diante um homem sagrado e a quem todas as leis – divinas e humanas – obrigariam a receber-me em sua casa quando eu viajasse pela Tartária e a ser meu amigo íntimo!
Os bárbaros de que vos falava só recebem os forasteiros quando pagos, e ainda assim em achavascados cochicholos. Vendem caro esse acolho miserável. Apesar de tudo ouço dizer que essa pobre gente se presume superior a nós e se vangloria de ter moral mais pura. Querem que seus pregadores falem melhor que Cong-fu-tseu. Enfim pretendem ensinar-nos justiça por venderem mau vinho nas estradas reais, suas mulheres saírem como loucas pelas ruas e dançarem enquanto as nossas cultivam bichos de seda.
C.
Acho plausível a hospitalidade e pratico-a com prazer. Mas receio o abuso. Existem, nas cercanias do grande Tibete, povos que vivem pessimamente alojados, amantes de andejar, que sem motivo algum seriam capazes de palmilhar o mundo de ponta a ponta. Entanto, se fordes ao grande Tibete desfrutar entre eles do direito da hospitalidade, não vos darão cama nem comida. Coisas tais podem fazer desgostar da polidez.
C. S.
O mal é pequeno e fácil de remediar, não se recebendo senão pessoas bem recomendadas. Não há virtude que não ofereça seus riscos. Por isso mesmo é belo abraçá-las.
Quão santo e sábio é o nosso Cong-fu-tseu! Não há virtude que não inspire. Em suas sentenças está a felicidade dos homens. Eis uma que me vem à memória – a qüinquagésima terceira:

Recompensai os benefícios com benefícios e jamais vos vingueis das injúrias.

Qual a máxima, qual a lei dos povos do Ocidente comparável a moral tão pura? Em quantos passos preceitua Cong-fu-tseu a humildade! Se os homens praticassem esta virtude jamais haveria querelas sobre a terra.
C.
Li tudo o que escreveram Cong-fu-tseu e os árabes dos séculos passados a respeito da humildade. Mas ninguém me parece tê-la definido com exatidão. Talvez seja pouca humildade atrever-me a increpá-los, mas tenho pelo menos a humildade de confessar não os haver compreendido. Dizei-me, que pensais dessa virtude?
C. S.
Obedecer-vos-ei humildemente. Reputo a humildade a modéstia da alma, porque a modéstia exterior não passa de civilidade. Ser humilde não é negar a si próprio uma superioridade que se possa ter adquirido sobre outrem. Um bom médico não pode deixar de reconhecer saber mais que seu cliente em delírio. Força é que um professor de astronomia admita ser mais ciente que seus discípulos. Não podendo negá-lo, não deve todavia presumir-se. Humildade não é abjeção: é corretivo do amor próprio, como a modéstia o é do orgulho.
C.
Pois bem! É no exercício de todas essas virtudes e no culto de um Deus simples e universal que quero viver, longe dos delírios dos sofistas e das ilusões dos falsos profetas. No trono, o amor ao próximo será minha virtude, o amor a Deus minha religião. Desprezarei o deus Fo e Lao Tseu e Vichnú, que tantas vezes se encarnou entre os hindus, e Samonocodom, que baixou do céu para fazer de escaravelho entre os siameses, e os camis, vindos da lua ao Japão.
Desgraçado do povo suficientemente cretino e bárbaro para pensar existir um Deus exclusivamente para o recanto do mundo em que habita! É uma blasfêmia. Se a luz do sol alumia todos os olhos, não iluminaria a luz de Deus mais que uma mísera nação num canto do globo! Que blasfêmia! Que dislate! A Divindade fala ao coração de todos os homens, e de extremo a extremo do mundo devem uní-los os laços da caridade.
C. S.
O sábio filho o rei de Lou! Falastes como que inspirado pelo próprio Chang-ti. Sereis um príncipe digno. Fui vosso mestre, agora sou vosso discípulo.
CATECISMO DO JAPONÊS (20)

Hindu
É verdade que antigamente os japoneses não sabiam cozinhar, que haviam entregue seu reino ao grande lama, que o grande lama decidia soberanamente do que devíeis comer e beber e de tempos em tempos vos enviava um pequeno lama a fim de cobrar tributos, pagando-vos com um sinal de proteção feito com os dois primeiros dedos e o polegar?
Japonês
Ai! Nada mais verdadeiro. Todos os cargos de canusi(21) – os grandes cozinheiros da nossa ilha – conferia-os o lama, e não certamente por amor de Deus. Além disso todas as famílias seculares pagavam uma onça de prata por ano a esse grande cozinheiro do Tibete. Em paga dava-nos minguados pratos de horrível paladar chamados sobejos. E quando lhe dava na veneta alguma nova fantasia, como declarar guerra aos povos do Tangate, escorchava-nos com subsídios suplementares. Muitas vezes nos queixamos, porém baldamente, quando não nos fazia pagar mais ainda. Por fim o amor, que tudo resolve maravilhosamente, libertou-nos dessa servidão. Um de nossos imperadores desaveio-se com o grande lama por causa. de uma mulher. Mas devo confessar que quem mais nos valeram nessa questão foram os nossos canusi, também chamados paiscospie. A eles devemos a libertação.
Eis o que se deu.
O grande lama tinha uma mania engraçada: julgava sempre ter razão. Uma vez ou outra, pelo menos, queriam os nossos canusi tê-la também. O grande lama achou absurda tamanha pretensão. Nossos canusi não arredaram pé e romperam definitivamente com ele.
Hindu
E de então em diante vivestes sem dúvida felizes e tranqüilos?
Japonês
Não inteiramente. Fomos perseguidos, dilacerados, devorados durante perto de dois séculos. Em vão pleiteavam nossos canusi ter razão. Somente há cem anos são razoáveis. Também, desde então podemos orgulhosamente considerar-nos uma das nações mais felizes da terra.
Hindu
Como podeis ser felizes se – a crer no que me disseram – vosso império se acha dilacerado por doze facções de cozinha? No mínimo tereis doze guerras civis por ano.
Japonês
Por que? Será que por termos doze chefes de cozinha, cada qual com uma receita diferente, deveremos matar-nos em vez de jantar? Pelo contrário, comeremos todos às mil maravilhas, cada um do cozinheiro que mais lhe agradar.
Hindu
De fato gostos não se devem discutir. A história, porém, é que ninguém se compenetra disso. Discutem, e da discussão às do cabo é um passo.
Japonês
Depois de muito discutirmos, vendo que com isso só tínhamos que perder, acabamos optando tolerar-nos mutuamente. Era, não há dúvida, o melhor partido que nos restava tomar.
Hindu
Poderíeis dizer-me quais são os chefes de cozinha que partilham a vossa nação na arte de beber e comer?
Japonês
Primeiramente há os breuseh, que em caso algum vos dariam morcela ou lardo. Preconizam as fontes puras da cozinha do tempo do onça. Prefeririam morrer a mordiscar um frango. Quanto ao mais, exímios calculadores, e fosse o caso de dividir uma onça de prata entre eles e os onze outros cozinheiros, açambarcariam logo a metade, deixando o resto para os que melhor soubessem contar.
Hindu
Presumo não costumais cear com gente tão esdrúxula?
Japonês
Claro. Em seguida vêm os pispatas, que em determinados dias da semana e em boa parte do ano prefeririam cem vezes comer rodelas de rodovalhos, trutas, linguados, salmões, esturjões, a saborear uma fritada de vitela que lhes ficaria por um nada.
Quanto a nós outros canusi, somos devotos apreciadores de carne de vaca e de certa pastelaria que em japonês se diz pudim. Toda gente convém em que os nossos cozinheiros sejam muito mais hábeis que os dos pispatas. Ninguém melhor que nós sabe preparar o garum dos romanos, as cebolas do antigo Egito, a pasta de gafanhoto dos primeiros árabes, a carne de cavalo dos tártaros. Sempre há o que aprender nos livros dos canusi, comumente chamados paiscospie.
Escuso-me de falar dos que comem a Teluro, assim como dos adeptos do regime de Vicalno, dos batistandos e que tais. Os quekars, porém, merecem atenção particular. São os únicos convivas que nunca vi se emborracharem nem praguejarem. Dificílimos de enganar, também nunca enganam ninguém. Parece que a lei que manda amar o próximo como a si mesmo foi feita especialmente para eles. Porque, verdade se diga, como pode um japonês dizer amar o próximo como a si próprio se por uma bagatela mete-lhe uma bala de chumbo na cabeça ou decapita-o com um cris de quatro dedos de largo? Quando ele próprio vive em constante risco de ser degolado ou engolir balas de chumbo? Com mais propriedade se dirá que ele odeia o próximo como a si mesmo. Os quekars nunca tiveram desses furores. Dizem eles serem os homens efêmeros vasos de argila e que não vale a pena se despedaçarem deliberadamente uns contra os outros.
Confesso que se não fosse canusi não me desagradaria ser quekar. Força é reconhecer que não há meio de brigar com cozinheiros tão pacíficos. Há outros, em número incontável, a que chamamos diestas. Dão os diestas de comer a toda gente indiferentemente e em sua casa sois livre de comer o que vos der na língua – recheado, lardeado, sem recheio, sem lardo, com ovos, com óleo; perdiz, salmão, vinho palhete, vinho tinto, tudo lhes é indiferente. Contanto que façais alguma oração a Deus antes ou após o jantar, ou simplesmente antes do almoço, e sejais honrado, de bom grado rirão convosco à custa do grande lama, de Vicalno, de Memnão e o mais que segue. Felizmente reconhecem que nossos canusi são doutíssimos em matéria culinária, e sobretudo nunca falam em cercear nossas rendas. Assim, vivemos na mais edênica harmonia.
Hindu
Mas a final deve haver uma cozinha predominante, a cozinha do rei.
Japonês
Confesso-o. Mas naturalmente depois de seus gordos banquetes o rei está derretendo de bom humor e não põe embargos à digestão de ninguém.
Hindu
E se algum cabeça dura encasquetar de comer no nariz do rei salsichas que lhe repugnem? Se se reunirem armados de grelhas quatro ou cinco mil desses indivíduos para cozer suas salsichas? Se insultarem as pessoas avessas e salsichas?
Japonês
Nesse caso será preciso puni-los como bêbedos que perturbam o repouso dos cidadãos. Previmos o perigo. Só os que comem à real são contemplados com as dignidades do estado. Todos os outros podem comer como lhes ditar a fantasia, porém são excluídos dos cargos. Soberanamente interditos e punidos sem remissão são os tumultos à mesa. Atalha-se cuidadosamente toda discussão, consoante o preceito do grande cozinheiro japonês Sufi Raho Cus Flac(22), que escreveu na língua sagrada:

Natis in usum laetitae scyphis
pugnare Thracum est...

O que quer dizer: O jantar foi feito para gáudio recatado e mundo, e não se devem atirar copos à cabeça.
Com essas máximas vivemos felizmente em nossa terra. A liberdade individual roborou-se sob os nossos tecosema. Cresce nossa riqueza. Possuímos duzentos juncos de linha, e constituímos o terror dos nossos vizinhos.
Hindu
Por que motivo então o bom versificador Recina(23), filho do poeta indiano do mesmo nome, tão delicado, tão exato, tão harmonioso, tão eloqüente, disse em uma obra didática rimada intitulada A Graça (não As Graças):

O Japão, onde brilharam tantas luzes,
hoje é um triste acervo de loucas visões –?

Japonês
O próprio Recina de que me falais é um grande visionário. Ignorará esse mísero hindu que fomos nós quem lhe ensinamos o que é a luz? Que se na Índia conhecem a rota dos planetas, a nós o devem? Que fomos nós quem ensinamos aos homens as leis primordiais da natureza e o cálculo do infinito. Que, se é preciso descer a coisas mais triviais, conosco aprenderam os hindus a construir juncos segundo proporções matemáticas? Que nos devem até os borzeguins chamados meias do ofício com que cobrem as pernas? Seria possível que tendo inventado tantas coisas admiráveis ou úteis não fôssemos nós mais que loucos, e que um homem que escreveu em versos os desvairos de outrem fosse o único sábio? Deixe-nos com a nossa cozinha, e se quiser que faça versos sobre assuntos mais poéticos.
Hindu
Que quereis. Ele está intoxicado dos preconceitos de sua terra, de seu partido e dos seus próprios.
Japonês
Arre! Quanto preconceito!
CATECISMO DO PÁROCO

Aríston
Então, caro Teótimo, ides ser pároco no interior?
Teótimo
É verdade. Deram-me uma paroquiazinha, mas prefiro-a a uma grande. Minha inteligência e atividade são restritas. Não poderia, por certo, dirigir setenta mil almas, pois só tenho uma. Admirou-me sempre a confiança dos que põem ombros à empresa de manobrar o leme desses imensos distritos. A mim me falecem forças para me abalançar a tanto. Um rebanho muito grande me amedronta, conquanto possa prestar algum benefício a um pequeno. Estudei suficientemente jurisprudência para impedir, tanto quanto me for possível, que meus paroquianos se arruinem em demandas. Sei de medicina o bastante para prescrever-lhes remédios simples quando caírem doentes. Conheço de agricultura o quanto basta para dar-lhes lá uma vez ou outra um conselho útil. O senhor do lugar e sua esposa são pessoas honradas, que me ajudarão a praticar o bem. Espero ser feliz e felizes fazer os meus paroquianos.
Aríston
Não sentis não ter uma esposa Seria um grande consolo. Como seria agradável encontrardes no lar, após haver pregado, cantado, confessado, comungado, batizado, enterrado, uma mulherzinha doce e virtuosa, que cuidasse de vossa roupa e de vossa pessoa, que vos desagastasse na saúde e vos assistisse na doença, que vos brindasse com bonitos filhos cuja boa educação aproveitaria ao estado! Lamento-vos, a vós que servis aos homens, de vos ver privado de tão necessário lenitivo.
Teótimo
A igreja grega incita os clérigos ao casamento. O mesmo faz a igreja anglicana e os protestantes. Diversamente pensa a igreja latina, e forçoso é que me submeta. Talvez hoje, que o espírito filosófico realizou tão notáveis progressos, um concilio instituísse leis mais consoantes à humanidade que o concílio de Trento. Nesse em meio, porém, devo conformar-me às leis vigentes. É custoso, bem o sei, mas tanta gente melhor que eu a tanto se resignou que não devo murmurar.
Aríston
Sábio sois e sábia é a vossa eloquência. Como contais pregar aos camponeses?
Teótimo
Como pregaria a reis. Falar-lhes-ei a todo instante de moral e jamais de controvérsias. Defende-me Deus aprofundar a graça concomitante, a graça eficaz a que se resiste, a suficiente que não basta. Veda-me inquirir se tinham corpo os anjos que comeram com Abraão e Ló, ou se fingiram comer. Há mil coisas que meu auditório não entenderia, e eu tão pouco. Diligenciarei fazer gente de bem e igualmente sê-lo. Mas não farei teólogos, e se-lo-ei o menos possível.
Aríston
Oh que excelente cura! Hei de comprar uma casa de campo na vossa paróquia. Que pensais da confissão?
Teótimo
A confissão é um ótimo freio contra os crimes, que nos legou a mais remota antigüidade. Era costume, outrora, confessar-se na celebração de todos os mistérios. Imitamos e santificamos esta sábia usança. A confissão move os corações ulcerados de ódio a perdoar e os ladrões à devolução do furto. Tem suas inconveniências: há muitos confessores indiscretos, particularmente entre os monges, que não raro ensinam às moças mais indecências que todos os rapazes de uma aldeia. Nada de pormenores na confissão. Não se trata de interrogatório judicial, senão do reconhecimento das próprias faltas perante Deus, feito por um pecador nas mãos de outro pecador, que de seu turno também se acusará. Não se faz esse desabafo salutar para satisfazer a curiosidade de ninguém.
Aríston
E a excomunhão? Usá-la-eis?
Teótimo
Não. Há rituais em que se excomungam as bailarinas, os feiticeiros e os comediantes. Não precisarei proibir a entrada à igreja às bailarinas, pois nunca a freqüentam. Não excomungarei os feiticeiros, pois não os há. Quanto aos comediantes, como os pensiona o rei e autoriza-os o magistrado, abster-me-ei de os difamar. Até vos confesso, como a amigo, que muito aprecio a comédia. quando não vai de encontro aos costumes. Nutro verdadeira paixão a O Misantropo, Atália e outras peças que me parecem da escola da virtude e do decoro. O senhor da minha aldeia faz representar em seu castelo peças dessa natureza por jovens de talento. Tais espetáculos inspiram a virtude em consórcio com o prazer. Educam o gosto, ensinam a bem falar e bem pronunciar. Não vejo nisso senão uma recreação inocente e até muito útil. Conto, para ilustrar-me, assistir a esses espetáculos. Fa-lo-ei todavia em camarote fechado, para não escandalizar os simples.
Aríston
Quanto mais me revelais vossos sentimentos, mais desejo tornar-me vosso paroquiano. Uma coisa preocupa-me: como fareis para evitar que os campônios se embriaguem nos dias de festa? É essa a solenidade com que as celebram. Haveis de vê-los prostrados pelo álcool, cabeça pensa, mãos descaídas, estrouvinhados, reduzidos a estado mais vil que o dos brutos, reconduzidos titubeantes para casa pelas esposas desfeitas em pranto, incapazes de enfrentar o trabalho no dia seguinte, muitas vezes doentes e embrutecidos para o resto da existência. Ve-los-eis, enfunados pelo vinho, travar rixas sangrentas, atarracarem-se como feras, e não raro desfecharem em morte estas cenas que cobrem de opróbrio a espécie humana. Perde o estado mais súdito em festas do que em batalhas. Como atalhareis em vossa paróquia tão execrando abuso?
Teótimo
Meu partido está tomado. Consentirei, instarei até que cultivem seus campos nos dias de festa, após o serviço divino, que celebrarei ao alvorecer. O ócio do feriado é que os leva à taverna. Não há cabida, nos dias consagrados ao trabalho, para a devassidão e o assassínio. O trabalho moderado é propiciador de saúde do corpo e da alma. Demais, necessita-o o estado. Suponhamos pessimistamente cinco milhões de homens cujo trabalho diário renda dez mil réis por indivíduo. Ao cabo de um ano, cinco milhões de homens inúteis durante trinta dias serão trinta vezes cinco milhões de notas de dez mil réis perdidas pelo estado em mão de obra. Ora, claro é que Deus jamais preceituou semelhantes desperdícios e borracheiras.
Aríston
Assim conciliareis a religião e o trabalho. Um e outro foram prescritos por Deus. Servireis a Deus e ao próximo. Mas que partido tomareis em face das disputas eclesiásticas?
Teótimo
Nenhum. Como controverter a virtude, se a virtude provém de Deus? Discutir, só as opiniões dos homens.
Aríston
Oh excelente pároco! Sapientissimo pároco!

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