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Saturday, September 15, 2007

DICIONÁRIO FILOSÓFICO VOLTAIRE L-P

LEIS (DAS)

Nos tempos de Vespasiano e Tito, em que os romanos se dedicavam a abrir o ventre dos judeus, um israelita riquíssimo, que não tinha o mínimo desejo de sofrer idêntica operação, fugiu com todo o ouro que ganhara em seu ofício de usurário, conduzindo para Eziongaber toda a sua família, que consistia em sua velha mulher, um filho e uma filha. Levava também consigo dois eunucos, um dos quais lhe servia de cozinheiro, outro de lavrador e vinhateiro. Um bom essênio que conhecia o Pentateuco de cor servia-lhe de capelão. Embarcaram-se no porto de Eziongaber, atravessaram o mar a que chamamos Vermelho e que de vermelho nada tem, e entraram no golfo Pérsico, a fim de procurar a terra de Ofir, sem saber onde ficava. Podeis crer como verdade absoluta ter sobrevindo uma terrível tempestade que atirou a família hebraica às costas das Índias; o navio naufragou numa das ilhas Maldivas, chamada hoje em dia Padrabranca, que era então deserta.
O velho ricaço e a velha se afogaram; o filho, a filha, os dois eunucos e o capelão salvaram-se; tiraram da melhor forma algumas provisões do navio, construíram umas pequenas cabanas na ilha e aí puseram-se a viver comodamente. Sabei que a ilha de Padrabranca está situada a cinco graus da linha, e que aí se encontram os maiores cocos e os melhores ananases do mundo. Era pois muito agradável viver ali enquanto noutros lugares se degolavam os restos da nação querida; mas o essênio lamentava-se considerando que talvez não houvesse mais judeus sobre a terra e que a semente de Abraão iria terminar.
“A vós somente compete ressuscitá-la – disse o jovem judeu: desposai minha irmã. – Bem o desejaria, – disse o capelão, – porém a lei se opõe. Eu sou essênio fiz voto de jamais me casar; a lei manda que cada um cumpra o seu voto: acabe-se a raça judaica se assim se quer, mas certamente eu jamais casarei com vossa irmã, por bonita que for.
— Meus dois eunucos não lhe podem fazer filhos, – retornou o judeu; – fa-los-ei portanto eu, com vosso beneplácito e vossa bênção.
— Antes queria eu ser mil vezes degolado pelos soldados romanos, – respondeu o capelão, – do que me acumpliciar num incesto; se ela fosse vossa irmã paterna, ainda era possível, a lei o permite; mas não, ela é vossa irmã materna; isso é abominável.
— Compreendo – disse o jovem – que seria um crime em Jerusalém, onde outras filhas judias estariam à minha disposição; mas na ilha de Padrabranca, onde apenas vejo cocos, ananases e ovos, creio ser coisa bem permissível”.
O judeu casou, pois, com sua irmã, e teve uma filha, apesar dos protestos do essênio: foi o único fruto de um casamento que um julgava legítimo e outro abominável. Ao cabo de catorze anos a mãe morreu; disse o pai ao capelão: “Desfizestes-vos finalmente de vossos preconceitos? Quereis desposar minha filha? – Deus me preserve disso! – retrucou o essênio. – Pois bem! então eu casarei com ela, disse o pai; seja o que for; mas não quero que a semente de Abraão seja reduzida a nada”. O essênio, espantado com tão horrível propósito, não quis saber de continuar a viver com um homem que desrespeitava a lei e fugiu. O recém casado perdeu seu tempo em gritar-lhe: “Ficai comigo, meu amigo; eu observei a lei natural, eu sirvo à pátria, não abandoneis os vossos amigos”. O outro deixou-o gritar, metida que tinha, sempre, a lei na cabeça, e fugiu a nado para a ilha próxima.
Era a grande ilha de Atola, muito povoada e civilizada; apenas chegou fizeram-no escravo. Aprendeu a balbuciar a língua de Atola; queixou-se amargamente pelo modo inhospitaleiro por que fora recebido: disseram-lhe que era a lei, e que desde que a ilha estivera a ponto de ser atacada de surpresa pelos habitantes da de Ada, estabelecera-se sabiamente que todos os estrangeiros que ali fossem ter seriam submetidos como escravos. “Isso não pode ser uma lei”, – disse o essênio, – “pois não está escrito no Pentateuco. Responderam-lhe que em compensação estava escrito no digesto do país, e ele permaneceu escravo: tinha, aliás, um ótimo senhor que o tratava muito bem e ao qual se prendeu pelos mais fortes laços de amizade.
Alguns assassinos vieram um dia para matar o dono e roubar-lhe seus tesouros; perguntaram aos escravos se estava em casa e se tinha muito dinheiro. “Juramo-vos – responderam os escravos – que ele não tem dinheiro algum e que não está em casa”. Disse porém o essênio: “A lei não me permite mentir; juro-vos que está em casa e que tem muito dinheiro”. Assim o dono foi roubado e morto. Os escravos acusaram o essênio perante os juizes de haver traído seu patrão; o essênio alegou que não quisera mentir, nem mentiria por nada no mundo; e foi enforcado.
Essa historieta e muitas outras parecidas foram-me contadas na última viagem que fiz às Índias. Quando cheguei, fui a Versalhes para alguns negócios; vi passar uma bela mulher seguida de grande número de outras também belíssimas. “Quem é essa mulher?” perguntei ao meu advogado no parlamento, que viera comigo: pois tinha um processo no parlamento de Paris, em virtude dos hábitos que adquiri nas Índias, e desejava ter constantemente meu advogado comigo. “É a filha do rei, – disse ele: – é encantadora e caridosa; é uma grande pena que, em caso algum, jamais possa ser rainha de França.
— Como, – disse-lhe eu – se tivéssemos a desgraça de perder todos os seus parentes e príncipes de sangue (o que Deus não permita!) ela não poderia herdar o reino de seu pai? – Não, – disse o advogado – a lei sálica se opõe formalmente a isso – E quem fez essa lei? – perguntei ao advogado. – Nada sei a esse respeito, – disse ele; – mas costuma-se dizer que um antiquíssimo povo chamado sálicos, que não sabiam ler nem escrever, tiveram um tempo uma lei escrita a qual dizia que em terra sálica nenhuma filha podia herdar; e essa lei foi adotada em terras não sálicas. – Pois eu – respondi – casso-a por minha conta; afirmastes-me que essa princesa é encantadora e caridosa; portanto ela teria um direito incontestável à coroa se a infelicidade a tornasse única remanescente do sangue real: minha mãe herdou de seu pai e eu quero que a princesa herde do seu”.
No dia seguinte o meu processo foi julgado numa das câmaras do parlamento: perdi por unanimidade; explicou-me o meu advogado que eu teria ganho também por unanimidade numa outra câmara. “Eis uma coisa bem cômica – disse-lhe eu; – de modo que, cada câmara, cada lei. – Sim, – disse ele – há vinte e cinco comentários sobre a lei municipal de Paris; isto é, provou-se vinte e cinco vezes que a lei municipal de Paris está errada; e se houvesse vinte e cinco câmaras de juizes haveria também vinte e cinco jurisprudências diferentes. Temos, – continuou ele – a quinze léguas de Paris uma província chamada Normandia, onde seríeis julgado de forma muito diferente daqui”.
Isto deu-me vontade de ver a Normandia. Para lá me dirigi com um de meus irmãos. Encontramos no primeiro hotel um jovem que se lamentava, desesperado; perguntando-lhe em qual a causa de sua desgraça, respondeu-me que era ter um irmão mais velho.
— Em que consiste pois a grande desgraça de ter um irmão mais velho? – perguntei-lhe; – meu irmão é mais velho do que eu e no entanto vivemos muito bem juntos.
— Ah! senhor, – disse-me ele, – a lei aqui tudo concede aos primogênitos sem nada deixar aos caçulas.
— Tendes razão – disse-lhe eu – de estar zangado; em nossa cidade repartimos igualmente, e nem sempre os irmãos se estimam melhor por isso.”
Essas pequenas aventuras proporcionaram-me belas e profundas reflexões sobre as leis, e verifiquei serem elas como nossos trajes: em Constantinopla fui obrigado a usar um dólman, em Paris um gibão.
Se todas as leis humanas são apenas convenções, disse eu, o que vale é fazer-se um bom contrato. Os burgueses de Deli e Agra dizem ter feito um péssimo contrato com Tamerlão; os burgueses de Londres felicitam-se pelo ótimo ajuste que fizeram com o rei Guilherme de Orange.
Um cidadão de Londres dizia-me certo dia: “É a necessidade que faz as leis, e a força as faz observar”. Perguntei-lhe se a força não fazia também leis em algumas ocasiões, e se Guilherme, o Bastardo e o Conquistador, não lhes havia dado ordens sem estabelecer contrato algum. “Sim”, – disse ele – “nesse tempo éramos uns bois; Guilherme nos colocou uma canga e nos fez caminhar a golpes de aguilhão; depois nos transformamos em homens, porém os cornos nos ficaram e com eles maltratamos todos os que pretendem que trabalhemos para eles e não para nós mesmos”.
Tomado de todas estas reflexões comprazia-me em pensar que existe uma lei natural, independente de todas as convenções humanas: o fruto de meu trabalho deveria ser meu; devia honrar meu pai e minha mãe; não tenho direito algum sobre a vida do meu próximo e meu próximo não o tem sobre a minha, etc. Mas, quando pensei que, de Codorlaomor até Mentzel (48), coronel dos hussardos, cada um mata lealmente e saqueia o próximo com uma ordem de autorização no bolso do colete, fiquei bem aflito.
Contaram-me que entre os ladrões havia leis, e que as havia também na guerra. Perguntei quais eram essas leis da guerra. “A lei”, me dizem, “de enforcar um bravo oficial que tenha resistido numa péssima posição, sem canhão, a um exército real; a lei de enforcar um prisioneiro porque o adversário enforcou um dos vossos; a lei de pôr a fogo e sangue as aldeias que não tiverem enviado sua contribuição no dia designado, segundo as ordens do gracioso soberano das vizinhanças”. – “Muito bem, disse eu, eis o Espírito das leis”.
Depois de bem informado, descobri que existem sábias leis mediante as quais um pastor é condenado a nove anos de cárcere por ter dado um pouco de sal estrangeiro a seus carneiros. Meu vizinho foi arruinado por um processo: mandou cortar dois troncos que lhe pertenciam, em seu bosque; foi punido portanto por não ter podido observar uma formalidade que não pôde conhecer; sua mulher morreu na miséria e seu filho arrasta a vida mais infeliz. Confesso que essas leis são justíssimas, não obstante a sua execução ser um bocado dura; dão-me porém calafrios as leis que autorizam cem mil homens a degolar lealmente cem mil vizinhos. Pareceu-me que a maioria dos homens receberam da natureza um senso comum suficiente para fazer leis, mas nem todo mundo tem justiça suficiente para fazer boas leis.
Reuni os agricultores simples e tranqüilos de um lado a outro da terra; todos eles convirão em que deve ser permitido vender aos vizinhos o excedente do seu trigo e que a lei contrária é inumana e absurda; que as moedas representativas dos gêneros deverão ser tão puras como os frutos da terra; que um pai de família deverá ser dono de sua casa; que a religião deve reunir os homens a fim de os unir e não para fazer deles fanáticos e perseguidores; que os que trabalham não devem ser privados dos frutos de seu trabalho com o fim de alimentar a superstição e a ociosidade: eles farão numa hora trinta leis desta espécie, todas úteis ao gênero humano.
Chegue porém Tamerlão e subjugue a Índia; então não vereis senão leis arbitrárias. Uma asfixiará uma província para enriquecer um rendeiro de Tamerlão; outra transformará num crime de lesa majestade o ter falado mal da mulher do primeiro camarista de um raja; terceira apoderar-se-á da metade da colheita do agricultor, contestando-lhe o resto; enfim existirão leis mediante as quais um bedel tártaro virá arrancar vossos filhos do berço, fará do mais robusto um soldado e do mais fraco um eunuco, deixando o pai e a mãe sem consolo.
Ora, que vale melhor ser: o cão de Tamerlão ou seu súdito? É claro que a regalia do seu cão é muito superior.
LEIS CIVIS E ECLESIÁSTICAS

Foram encontradas nos papéis dos jurisconsultos estas notas, que talvez mereçam um pouco de exame.
Que jamais lei eclesiástica alguma seja válida senão mediante sanção expressa do governo. Foi desse modo que Atenas e Roma nunca tiveram querelas religiosas. Tais litígios são patrimônio das nações bárbaras ou transformadas em bárbaras.
Que apenas o magistrado possa permitir ou proibir o trabalho nos dias de festa, pois não cabe aos padres proibir aos indivíduos o cultivo de seus campos.
Que tudo o que concerne aos casamentos dependa exclusivamente do magistrado, e que os padres se atenham à augusta função de os abençoar.
Que o padre interessado seja puramente um objeto da lei civil, porquanto apenas ela preside, ao comércio.
Que todos os eclesiásticos sejam submetidos em todos os casos ao governo, porquanto são súdito do estado.
Que em tempo algum se cometa o ato ridículo e indecoroso de pagar a um padre estrangeiro a primeira anualidade da renda de uma terra que cidadãos deram a um padre concidadão.
Que padre algum jamais possa subtrair a um cidadão a mínima prerrogativa, sob pretexto de que tal cidadão seja um pecador, pois o padre pecador deve rezar pelos pecadores e não julgá-los.
Que os magistrados, os lavradores e os padres paguem igualmente os impostos do estado, pois todos pertencem igualmente ao estado.
Que não haja senão um peso, uma medida, um costume.
Que os suplícios dos criminosos sejam úteis, um homem enforcado não serve para nada, e um homem condenado aos trabalhos públicos ainda serve à pátria, constituindo uma lição viva.
Que toda lei seja clara, uniforme, precisa: interpretá-la é quase sempre corrompê-la.
Que nada, a não ser o vício, seja infame.
Que os impostos sejam sempre proporcionais.
Que a lei jamais esteja em contradição com o uso: porque se o uso é bom, a lei nada vale.
LIBERDADE (DA)

A
Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de a não ouvir?
B
É claro que não posso evitar ouvi-la.
A
Desejaríeis que esse canhão decepasse vossa cabeça e as de vossa mulher e vossa filha que estivessem convosco?
B
Que espécie de proposição me fazeis? Eu jamais poderia, em meu são juízo, desejar semelhante coisa. Isso me é impossível.
A
Muito bem; ouvis necessariamente esse canhão e, também necessariamente, não quereis morrer, vós e vossa família, de um tiro de canhão; não tendes nem o poder de não ouvi-lo nem o poder de querer permanecer aqui.
B
Isso é evidente.
A
Em conseqüência, destes uma trintena de passos a fim de vos colocardes ao abrigo do canhão: tivestes o poder de caminhar comigo estes poucos passos?
B
Nada mais verdadeiro.
A
E se fôsseis paralítico? Não teríeis podido evitar ficar exposto a essa bateria; não teríeis o poder de estar onde agora estais: teríeis então necessariamente ouvido e recebido um tiro de canhão e necessariamente estaríeis morto?
B
Nada mais claro.
A
Em que consiste, pois, vossa liberdade, senão está no poder exercido pelo vosso indivíduo de fazer o que a vossa vontade exigia com absoluta necessidade?
B
Embaraçais-me; então a liberdade é apenas o poder de fazer o que bem entendo?
A
Refleti um pouco. Vede se a liberdade pode ser outra coisa.
B
Neste caso o meu cão de caça é tão livre como eu; ele tem necessariamente a vontade de correr quando vê uma lebre e o poder de correr se não estiver doente das pernas. Eu nada tenho, pois, mais do que meu cão: reduzis-me ao estado das bestas.
A
Eis uma série de pobres sofismas dos pobres sofistas que vos instruíram. Eis que estais despeitado por não serdes livre como vosso cão. Ora, não vos pareceis com ele em mil coisas? A fome, a sede, o velar, o dormir, os cinco sentidos, não são em vós como nele? Pretenderíeis cheirar com outro qualquer órgão além do nariz? Por que quereis uma liberdade diferente da que ele tem?
B
Porém eu tenho uma alma que raciocina muito bem, e o meu cão não pensa coisa alguma. Ele apenas tem idéias simples, enquanto eu tenho mil idéias metafísicas.
A
Pois muito bem! Sois mil vezes mais livre do que ele, isto é, tendes mil vezes mais poder de pensar do que ele; porém vossa liberdade é perfeitamente igual à dele.
B
Como? Eu não tenho a liberdade de querer o que desejo?
A
Que entendeis com isso?
B
O que toda gente entende. Não se diz diariamente: “As vontades são livres”?
A
Um provérbio não é uma razão; explicai-vos melhor.
B
Penso que sou livre de querer como melhor me agradar.
A
Com vossa licença, isso não tem o mínimo sentido; não percebeis que é ridículo dizer: “Eu quero querer”? Necessariamente, vós desejais em conseqüência das idéias que se vos apresentam. Quereis casar, sim ou não?
B
Mas e se eu vos disser que não quero nem uma nem outra coisa?
A
Responderíeis como aquele que disse: “Uns pensam que o cardeal Mazarino está morto; outros, que está vivo; eu não creio nem numa coisa nem noutra”.
B
Pois bem, quero casar-me.
A
Isto é responder! Por que quereis casar?
B
Porque estou apaixonado por uma bela rapariga, bem educada, muito rica, que canta muito bem, filha de pais honestos e que me ama, assim como sua família.
A
Eis uma razão. Vedes, pois, que não podeis querer sem razão. Declaro-vos que tendes a liberdade de vos casar: isto é, que tendes o poder de assinar o contrato.
B
Como! Eu não posso querer sem motivo? Que sucede então a este outro provérbio: Sit pro ratione voluntas: minha vontade é minha razão, eu quero porque quero?
A
Isso é absurdo, meu caro amigo, pois haveria em vós um efeito sem causa.
B
Que? Quando jogo par ou ímpar tenho então um motivo para escolher par em vez de ímpar?
A
Sim, sem nenhuma dúvida.
B
E qual é essa razão, por obséquio?
A
É que a idéia de par se apresentou ao vosso espírito mais do que a idéia oposta. Seria muito cômico que nalguns casos desejásseis por existir uma razão para o vosso desejo e que noutros desejásseis sem motivo. Quando vos quereis casar, sentis a razão dominante, evidentemente; não a sentis quando jogais par ou ímpar, e contudo é mister que exista uma.
B
Mas, uma vez ainda: sou ou não sou livre?
A
Vossa vontade não é livre mas vossas ações o são. Tendes a liberdade de fazer quando tendes o poder de fazer.
B
Mas, todos os livros que li sobre a liberdade de indiferença...
A
São tolices: não existe liberdade de indiferença; é um termo destituído de senso, inventado por pessoas que o não possuem.
LOUCURA

Não se trata de reeditar o livro de Erasmo, que na atualidade não seria mais do que um lugar comum bastante insípido.
Chamamos loucura a essa doença dos órgãos do cérebro que impede um homem de pensar e de agir como os outros. Não podendo gerir seus bens, é interdito; não podendo ter idéias de acordo com a sociedade, é excluído; se for nocivo, é enclausurado; se for furioso, trancafiam-no.
É importante observar que esse homem, entretanto, não carece de idéias; ele as tem como todos os outros enquanto acordado e, freqüentemente, enquanto dorme. Poder-se-á perguntar como sua alma espiritual, imortal, alojada em seu cérebro, recebendo todas as idéias por meio dos sentidos coordenados e divididos, não possa concluir um julgamento são. Ela vê os objetos como os viam a alma de Aristóteles e de Platão, de Locke e de Newton; ouve os mesmos sons, tem o mesmo sentido do tacto: por que motivo, pois, recebendo percepções que os mais sábios experimentam, compõe um conjunto inevitavelmente extravagante?
Se essa substância simples e eterna possui para as suas ações os mesmos instrumentos das almas dos cérebros mais sábios, deve raciocinar como eles. Que o impediria? Claro que se um maluco vê vermelho e os sábios azul; se quando os sábios ouvem uma música o louco ouve o zurrar de um asno; se quando eles estão no sermão o louco julga estar na comédia; se quando eles ouvem sim, ele entende não, então sua alma deve pensar ao contrário das outras. Mas o louco tem as mesmas percepções que eles; não há nenhuma razão aparente pela qual sua alma, tendo recebido mediante os sentidos todos os seus utensílios, não os possa usar. Ela é pura, dizemos; não está sujeita por si própria a nenhuma enfermidade; ei-la provida de todos os recursos necessários; passe o que se passar em seu corpo, nada poderá mudar a sua essência; contudo, ei-la encerrada num manicômio.
Essa reflexão pode fazer supor que a faculdade de pensar, doada por Deus ao homem, esteja sujeita a desarranjos como os outros sentidos. Um louco é um doente cujo cérebro sofre, como o gotoso é um doente que sofre dos pés e das mãos; ele pensa com o cérebro, assim como anda com os pés, sem nada conhecer nem do seu poder incompreensível de andar, nem do seu não menos incompreensível poder de pensar. Sofre-se a gota no cérebro como nos pés. Enfim, após mil reflexões, é preciso convir em que somente a fé, talvez, possa convencer-nos de que uma substância simples e imaterial seja passível de doença.
Os doutos ou os doutores dirão ao louco: “Meu amigo, não obstante teres perdido o senso comum, tua alma é tão espiritual, tão pura, tão imortal como a nossa; porém nossa alma está bem alojada e a tua o está mal; as janelas da casa estão fechadas para ela; falta-lhe ar, ela sufoca”. O maluco, em seus bons momentos, lhes responderia: Meus amigos, pensais à vossa moda, o que é discutível. Minhas janelas estão tão abertas como as vossas, porquanto eu vejo os mesmos objetos e ouço as mesmas palavras: é pois necessário que, ou minha alma empregue mal os seus sentidos, ou seja ela própria um sentido viciado, uma qualidade depravada. Numa palavra, ou minha alma é louca por sua própria conta ou eu não tenho alma”.
Um dos doutores poderá responder: “Meu irmão, Deus criou, é possível, almas loucas, assim como criou almas sábias.” O louco replicará: “Se eu fosse acreditar no que me dizeis, seria ainda mais louco do que já sou. Por obséquio, vós que sabeis tanto, dizei-me, por que sou louco?”
Se os doutores tiverem ainda um pouco de bom senso lhe responderão: “Ignoro-o absolutamente.” Eles não compreenderão por que um cérebro tem idéias incoerentes; não compreenderão melhor por que outro cérebro tem idéias regulares e coerentes. Julgar-se-ão sábios, e serão tão loucos como ele.
LUXO

Há dois mil anos que se declama contra o luxo, em verso e em prosa, porém amando-o sempre.
Que não se disse dos primeiros romanos? Quando esses salteadores devastaram e pilharam as colheitas dos seus vizinhos, quando, para aumentar sua pobre aldeia, destruíram as pobres aldeias dos volscos e dos sanitas, eram homens desinteressados e virtuosos: ainda não tinham podido roubar ouro, nem prata, nem pedrarias, porque não havia nos burgos o que saquear. Nem seus bosques nem seus hortos tinham perdizes ou faisões e louva-se a sua temperança.
Quando, pouco a pouco, eles pilharam tudo, roubaram tudo, desde os confins do Adriático ao Eufrates, quando tiveram bastante espírito para gozar o fruto de suas rapinas durante setecentos ou oitocentos anos; quando cultivaram todas as artes, apreciaram os prazeres e até os fizeram gozar aos vencidos, então cessaram, diz-se, de ser sábios e honestos. Todas essas declamações servem para provar que um ladrão jamais deverá comer o jantar que tomou de um terceiro nem vestir o traje que roubou, nem enfeitar-se com o anel, produto de seu saque. É preciso, dizes, atirar tudo isso ao rio a fim de viver como gente honrada; digam antes que não se deveria roubar. Condenai os salteadores quando saqueiam, não os trateis porém como insensatos quando desfrutam de boa fé o produto de seus roubos. Quando um elevado número de marinheiros ingleses se enriqueceu na tomada de Pondichéry e de Havana, não teriam eles o direito de gozar em Londres como paga do trabalho que tiveram nos confins da Ásia e da América?
Desejariam os declamadores ver enterradas zelosamente as riquezas adquiridas na guerra, pela agricultura, pelo comércio e pela indústria? Eles citam os lacedemônios. Por que não citam também a república de São Marinho? Que benefícios fez Esparta à Grécia? Teve ela alguma vez homens como Demóstenes, Sófocles, Apeles, Fídias? O luxo de Atenas criou grandes homens em todo gênero; Esparta teve alguns capitães e ainda em número menor do que as outras cidades. Vão é que uma república tão pequena como a dos lacedemônios conserve a sua pobreza. Chega-se à morte tanto na miséria como gozando daquilo que nos pode tornar a vida agradável. O selvagem do Canadá subsiste e atinge a velhice como o cidadão inglês que tem cinqüenta mil guinéus de renda. Mas quem irá comparar, jamais, o país dos iroqueses à Inglaterra?
Que a república de Ragusa e o cantão de Zug façam leis suntuárias: eles têm razão, é preciso que o pobre não gaste além de suas posses; mas li nalgum lugar(49):
“Sabei que se o luxo enriquece um grande estado põe a perder um pequeno”.
Se por luxo entenderdes o excesso, sabemos muito bem que em tudo o excesso é pernicioso: na abstinência como no epicurismo, na economia como na liberalidade. Não sei como pode acontecer que, nas minhas aldeias, onde a terra é ingrata, os impostos pesados, a proibição de exportar o trigo que foi semeado, intolerável, não existe contudo um colono que não tenha uma boa roupa de banho e não seja bem calçado e bem nutrido. Se esse colono trabalha com a sua bela roupa, com linho branco, os cabelos frisados, polvinhados, eis certamente um grande luxo e uma impertinência; mas o fato de um burguês de Paris ou Londres comparecer ao espetáculo vestido como esse camponês seria interpretado como a sordidez mais grosseira e ridícula.

Est modus in rebus, sunt certi denique fines,
quos ultra citraque nequit consistere rectum

Quando se inventaram as tesouras, que não pertencem sem dúvida à mais remota antigüidade, o que não se disse contra os primeiros que cortaram as unhas e apararam uma parte dos cabelos que lhes caiam sobre o nariz? Foram tratados como pequenos burgueses e pródigos os que compravam mui caro o instrumento da vaidade a fim de falsificar a obra do Criador. Que enorme pecado encurtar os cornos que Deus fez nascer nas extremidades de nossos dedos Era um ultraje à Divindade. Ainda foi pior quando se inventaram as camisas e as chinelas. Sabe-se com que furor os velhos conselheiros, que jamais as tinham usado, gritaram contra os jovens magistrados que se deram a esse honesto luxo.
MATÉRIA

Os sábios a quem se pergunta o que é a alma, respondem que nada sabem a esse respeito. Se se lhes pergunta o que é a matéria, dão a mesma resposta. É verdade que alguns professores e principalmente alguns escolares conhecem perfeitamente tudo isso: e quando repetem que a matéria é extensa e divisível, julgam haver dito tudo; mas quando são solicitados a responder o que significa essa coisa extensa, ficam embaraçados. “Isso é composto de partes, dizem”. E essas partes de que são compostas? São os elementos dessas partes divisíveis? Então eles emudecem ou falam muito, o que é igualmente suspeito. Esse ente quase desconhecido a que chamamos matéria é eterno? Todos os antigos assim o julgaram. Terá ele, de per si, a força ativa? Vários filósofos o imaginaram. Os que o negam, têm o direito de negá-lo? Não concebeis que a matéria possa ser alguma coisa por si própria. Mas como podeis afirmar que ela não tenha por si mesma as propriedades que lhe são necessárias? Ignorais qual é a sua natureza e lhe recusais formas que estão nessa mesma natureza: porque, afinal, desde que ela é, faz-se absolutamente necessário que tenha uma forma, que seja figurada; e, desde que é necessariamente figurada, será impossível a existência de outras formas ligadas à sua configuração? A matéria existe, não a conheceis senão mediante vossas sensações. Ah! de que servem todas as susceptibilidades do espírito desde que raciocinamos? A geometria nos ensinou grande número de verdades, a metafísica bem poucas. Pesamos a matéria, medimo-la, decompomo-la; e, além dessas operações rudimentares, se quisermos dar um passo sentimos em nós a impotência e adiante de nós um abismo.
Perdoai, por mercê, ao universo inteiro, que se enganou ao julgar que a matéria existisse por si própria. Poderia proceder de forma diversa? Como imaginar que o que é sem sucessão não o foi sempre? Se não fosse necessária a existência da matéria, por que existe ela? E se era preciso que ela fosse, por que não teria sido sempre? Nenhum axioma foi tão universalmente aceito como este: Nada se faz de nada. Com efeito, o contrário é incompreensível. O caos precedeu em todos os povos a disposição que uma mão divina fez no mundo inteiro. A eternidade da matéria jamais ofendeu em povo algum o culto da Divindade. A própria religião jamais procurou impedir que um Deus eterno fosse reconhecido como o senhor de uma matéria eterna. Somos muito felizes, hoje, ao ser informados pela fé que Deus tirou a matéria do nada. Porém, nação alguma foi instruída a respeito desse dogma; os próprios judeus ignoraram-no. O primeiro versículo do Gênesis diz que os deuses Eloim (não Eloi) fizeram o céu e a terra; não dizem que o céu e a terra foram criados do nada.
Fílon, do único tempo em que os judeus tiveram alguma erudição, diz em seu capítulo da criação: “Deus, sendo bom por sua natureza, não insuflou a inveja na substância, na matéria, que por si mesma nada tinha de bom, que não tem de sua natureza senão a inércia, a confusão, a desordem. Dignou-se torná-la boa, de má que era”.
A idéia do caos desemaranhado por um deus encontra-se em todas as teogonias antigas. Hesíodo repetiu o pensamento do Oriente quando disse em sua Teogonia: “O caos foi o primeiro a existir” – Ovídio foi o intérprete de todo o império romano quando disse:

Sic ubi dispositam, quiscuis fuit ille deorum,
congeriem secuit... (50).

A matéria é, pois, nas mãos de Deus, como a argila nas do oleiro, se se nos permite o uso dessas débeis imagens para exprimir o poder divino.
A matéria, sendo eterna, devia ter propriedades eternas, como a configuração, a força de inércia, o movimento e a divisibilidade. Mas essa divisibilidade não é senão a resulta do movimento: pois sem movimento nada se divide, nem se separa ou coordena. O caos teria sido um movimento confuso, e a coordenação do universo um movimento regular imprimido a todos os corpos pelo senhor do mundo. Mas como poderia a matéria ter movimento próprio? Da mesma forma que tem, consoante todos os antigos, estensão e impenetrabilidade.
Mas não podemos concebê-la sem extensão, e podemos concebê-la sem movimento. A isto se responde: “É impossível que a matéria não seja permeável; ora, sendo permeável, é preciso que alguma coisa passe continuamente por seus poros; para que passagens, se nelas nada passasse?”
De réplica em réplica, não acabaríamos mais; o sistema da matéria eterna apresenta grandes dificuldades, como todos os sistemas. O da matéria formada do nada não é menos incompreensível. Deve-se admiti-lo sem pretender dar-lhe razão; nem tudo explica a filosofia. Quantas coisas incompreensíveis somos forçados a admitir, mesmo na geometria? Podemos conceber que duas linhas andem paralelamente sem nunca se encontrarem? Responder-nos-ão naturalmente os geômetras: “As propriedades das assintotas vos foram demonstradas; não podeis deixar de admiti-las; mas a criação, não: por que a admitia? Que dificuldade achais em crer, como todos os antigos, na matéria eterna?” Por outro lado dir-vos-á o teólogo: “Se acreditardes que a matéria é eterna, reconhecereis portanto dois princípios, Deus e a matéria; caís agora no erro de Zoroastro e Manés”.
Nada responderemos aos geômetras, porque aquela gente nada conhece além de suas linhas, suas superfícies e seus sólidos. Mas podemos dizer aos teólogos: “Em que sou maniqueu? Eis aqui pedras que um arquiteto não fabricou; ele ergueu uma construção imensa; não admito dois arquitetos; as pedras brutas obedeceram ao poder e ao gênio”.
Felizmente, seja qual for o sistema que abracemos, nenhum prejudica a moral: porque, que importa que a matéria tenha sido feita ou ordenada? Deus é igualmente nosso senhor absoluto. Devemos ser igualmente virtuosos em um caos desemaranhado ou em um caos criado do nada; quase nenhuma dessas questões metafísicas influi na conduta da vida: tais disputas são como as alegres periquitices que temos à mesa: depois de comer cada um esquece o que disse e vai para onde o chamam seu interesse e seu gosto.
MAU

Vivem a gritar-nos que a natureza humana é essencialmente perversa, que o homem nasceu mau e filho do diabo. Nada menos ponderado: porque, meu amigo, tu que me dizes que toda gente nasceu perversa, tu me advertes pois de que nasceste tal, que é preciso que eu desconfie de ti como de uma raposa ou de um crocodilo. – Oh! nada disso! – dizes, – eu me regenerei, não sou nem herege nem infiel, podeis fiar-vos em mim. – Mas o resto do gênero humano, que é ou herege ou o que chamas infiel, não será pois um conjunto de monstros? E todas as vezes que falares a um luterano ou a um turco deverás estar certo de que te roubarão ou assassinarão: pois são filhos do diabo; nasceram ruins; um nada tem de regenerado e o outro é degenerado. Seria muito mais razoável, muito mais belo, dizer aos homens: Nascestes bons; vede quão afrontoso seria corromper a pureza do vosso ser. Seria de mister proceder com o gênero humano como procedemos com os homens em particular. Se um cônego leva uma vida escandalosa, nós lhe dizemos: “É possível que desonreis a dignidade de cônego?” Faz-se lembrar a um magistrado que ele tem a honra de ser conselheiro do rei e que deve dar o exemplo. Diz-se a um soldado a fim de encorajá-lo: “Recorda que pertences ao regimento de Champagne” Dever-se-ia dizer a todo indivíduo: “Lembra-te de tua dignidade de homem”.
E, com efeito, não obstante a possuirmos, temos sempre necessidade dela: pois que quer dizer esta frase freqüentemente empregada em todos os povos, concentrai-vos em vós mesmo? Se houvésseis nascido filho do diabo, se vossa origem fosse criminosa, se vosso sangue fosse composto de um licor infernal, esta expressão concentrai-vos em vós mesmo significaria: consultai, segui vossa natureza diabólica, sede impostor, assassino, é a lei de vosso pai.
O homem não é ruim de nascimento; torna-se depois, assim como adoece. Alguns médicos se lhe apresentam e dizem: “Nascestes já doente.” Pile está perfeitamente certo de que esses médicos, por mais que façam, não o curarão se sua doença é inerente a sua natureza; esses próprios argumentadores são bem doentes.
Reuni todas as crianças do universo, e não vereis nelas senão inocência, doçura e timidez; se houvessem nascido más, malfeitoras, cruéis, mostrariam algum sinal, tal como as serpentezinhas procuram morder e os tigrinhos arranhar.
Mas a natureza não concedeu ao homem mais armas ofensivas do que aos coelhos e aos pássaros, não lhes pode dar um instinto que os conduza à destruição.
Portanto o homem não é mau de nascimento. Por que então existe tão grande número de infetados por essa peste da ruindade? É que aqueles que os dirigem, sendo colhidos pela doença, comunicam-na ao resto dos homens, como uma mulher atacada do mal que Cristóvão Colombo trouxe da América espalha esse veneno de extremo a outro da Europa. O primeiro ambicioso corrompeu a terra.
Ides dizer-me que esse primeiro monstro desenvolveu o germe do orgulho, da rapina, da fraude, da crueldade, que existe em todos os homens. Sei muito bem que em geral a maioria de nossos irmãos pode adquirir esses defeitos; estará porém toda gente contaminada pela febre pútrida, pelos cálculos renais, apenas por que todos estão expostos?
Existem nações inteiras completamente boas: os filadélfios, os banianos nunca mataram pessoa alguma; os chineses, os povos de Tonquim, de Lao, de Siam, do próprio Japão, durante várias centenas de anos não conheceram a guerra. Apenas de dez em dez anos é possível ver um desses crimes que comovem a natureza humana nas cidades de Roma, Veneza, Paris, Londres, Amsterdã, cidades onde, de feito, a cupidez, mãe de todos os crimes, é extensa.
Se os homens fossem essencialmente maus, se nascessem completamente submetidos a um ser tão malfeitor como infeliz, que para se vingar de seus suplícios lhes inspirasse todos os seus furores, ver-se-iam todas as manhãs maridos assassinados por suas mulheres e pais por seus filhos, como podemos contemplar no alvorecer do dia frangos estrangulados por uma doninha que lhes sugou o sangue.
Se houver um bilhão de homens sobre a terra será muito; isto dá aproximadamente quinhentos milhões de mulheres que costuram, que cozinham, que alimentam seus filhos, que tomam conta da casa ou cabana própria, e que falam um certo mal de suas vizinhas. Não vejo que grande mal essas pobres inocentes fazem sobre a terra. Sobre esse número de habitantes do globo há duzentos milhões de crianças no mínimo, que com toda certeza não saqueiam nem matam, e cerca de outro tanto de velhos e doentes que o não podem fazer. Restarão quando muito cem milhões de jovens robustos e capazes de praticar o crime. Desses cem milhões noventa estão continuamente ocupados em forçar a terra, mercê de um trabalho prodigioso, a fim de que esta lhes dê alimentos e roupas; esses não têm igualmente tempo para fazer o mal.
Nos dez milhões restantes estão compreendidos os ociosos que prezam a boa companhia das mesas, que desejam viver doce e tranqüilamente, os homens de talento ocupados com suas profissões, os magistrados, os padres, visivelmente interessados em levar uma vida pura, ao menos na aparência. Como verdadeiros maus, portanto, apenas restarão alguns políticos, amadores ou profissionais, e alguns milhares de vagabundos que lhes alugam os seus serviços. Ora, impossível seria atuar um milhão de bestas ferozes ao mesmo tempo; e nesse número estão incluídos os assaltantes das estradas reais. Tendes, pois, quando muito, sobre a terra, nos tempos mais borrascosos, um homem sobre mil a quem se pode chamar mau.
Há pois infinitamente menos mal sobre a terra do que se diz e pensa. E é ainda muito, sem dúvida: assistimos a desgraças e crimes horríveis; porém o prazer de se lamentar e exagerar é tão grande que à mínima arranhadela seríeis capaz de bradar que a terra regurgita de sangue. Fostes enganado, todos os homens são perjuros. Um espírito melancólico que sofreu uma injustiça vê o universo coberto de danados, como um jovem voluptuoso ceando com sua dama, ao sair da Ópera, não acredita na existência de infelizes.
MESSIAS

Messiah ou Meshiah em hebreu; Christos ou Eleimmenos em grego; Unctus em latim; Ungido.
Vemos no Velho Testamento que o nome de Messias foi dado a príncipes idólatras ou infiéis. Está dito(51) que Deus enviou um profeta para ungir Jeú, rei de Israel. Anunciou ele a unção sagrada a Hazael, rei de Damasco e Síria, pois esses dois príncipes eram os Messias do Altíssimo para punir a casa de Acabe.
No 45o. de Isaías o nome de Messias é expressamente dado a Ciro. “Assim disse o Eterno a Ciro, seu ungido, seu Messias, de quem tomei a mão direita, a fim de que eu submeta as nações diante dele, etc.”.
Ezequiel, no capítulo 28 de suas revelações, dá o nome de Messias ao rei de Tiro, a quem também chamava Querubim. “Filho do homem, – disse o Eterno ao profeta, – pronuncia em altas vozes uma queixa ao rei de Tiro, e diz-lhe:
“Assim disse o Senhor, o Eterno. Eras o sinete da semelhança de Deus, repleto de sabedoria e perfeito em beleza; foste o jardim do Éden do Senhor, (ou, segundo outras versões) eras todas as delícias do Senhor. Tuas vestes eram de sardônica, de topázio, de jaspe, de crisólita, de ônix, de berilo, de safira, de escarbúnculo, de esmeralda e ouro. O que sabiam fazer teus tambores e tuas flautas esteve contigo; eles foram aprontados no dia de tua criação; foste um Querubim, um Messias”.
Esse nome de Messiah, Christ, era dado aos reis, aos profetas e aos grandes sacerdotes dos hebreus. Lemos no 1o. dos Reis, XII, 5: “O Senhor e seu Messias são testemunhas”, isto é: “O Senhor e o rei que estabeleceu”. E alhures: “Não toqueis em meus ungidos nem façais mal algum a meus profetas”. Davi, animado do espírito de Deus, deu em várias ocasiões a Saul, seu sogro renegado, que o perseguia, o nome e a qualidade de ungido, de Messias do Senhor. “Deus me guarde” – diz freqüentemente – “de levantar a mão sobre o ungido do Senhor, sobre o Messias de Deus!”
Se o nome de Messias, ungido do Senhor, foi dado a reis idólatras, a renegados, foi também mui freqüentemente empregado em nossos antigos oráculos para designar o verdadeiro ungido do Senhor, esse Messias por excelência, o Cristo, filho de Deus, enfim o próprio Deus.
Se compararmos todos os diversos oráculos que se aplicam de ordinário ao Messias, não pode haver ao que parece dificuldade alguma capaz de favorecer os judeus, no sentido de justificar, se o pudessem, sua obstinação. Vários grandes teólogos concordam que, no estado de opressão sob o qual gemia o povo judeu, e depois de todas as promessas que o Eterno lhe fez com tanta freqüência, podia suspirar pela vinda de um Messias vencedor e libertador, e que assim se torna de certa forma escusável o não haver a princípio reconhecido esse libertador na pessoa de Jesus.
Pertencia ao plano da sabedoria eterna que as idéias espirituais do verdadeiro Messias permanecessem desconhecidas pelas multidões cegas; foram-no ao ponto de os doutores judeus tomarem o cuidado de não negar senão os trechos que alegamos deverem ser entendidos como referentes ao Messias. Dizem vários que o Messias já veio na pessoa de Ezequias; é também o pensamento do famoso Hilel. Outros, em grande número, pretendem que a crença da vinda de um Messias não é absolutamente um artigo fundamental de fé, e que esse dogma, não assomando nem no Decálogo nem no Levítico, não passa de uma esperança consoladora.
Vários rabinos dizem não duvidar que, segundo os antigos oráculos, o Messias não tenha vindo nos tempos determinados; mas que ele não envelhece, que ficará sobre esta terra e esperará, para se manifestar, que Israel tenha celebrado como é de mister o sabate.
O famoso rabino Salomão Jarquí ou Rasquí, que viveu no princípio do duodécimo século, diz em suas Talmúdicas que os antigos hebreus acreditaram que o Messias nascera no dia da última destruição de Jerusalém pelos exércitos romanos; é, como se costuma dizer, chamar o médico depois da morte.
O rabino Quinquí, que também viveu no duodécimo século, anunciou que o Messias, cuja vinda julgava muito próxima, expulsaria da Judéia os cristãos que a possuíam até aquele momento; é verdade que os cristãos perderam a Terra Santa; mas foi Saladino quem os venceu; por pouco que esse conquistador tenha protegido os judeus declarando-se a seu favor, parece que em seu entusiasmo eles o transformaram em seu Messias.
Os autores sacros, e o próprio Nosso Senhor Jesus, comparam freqüentemente o reino do Messias e a eterna beatitude a dias de esponsais, a festins; porém os talmudistas abusaram estranhamente dessas parábolas; segundo eles, o Messias dará a seu povo, reunido na terra de Canaã, uma refeição cujo vinho será o mesmo feito por Adão no Paraíso terrestre, e que se conserva em vastas adegas, guardadas pelos anjos no centro da terra.
Servir-se-á de início o famoso peixe chamado o grande Leviatã, que engole de um só trago um peixe maior do que ele, o qual não deixa de ter trezentas léguas de comprimento; toda a maça das águas está apoiada sobre Leviatã. Deus, a princípio, criou um macho e uma fêmea; mas temendo que eles revolvessem a terra e enchessem o universo de seus semelhantes, Deus matou a fêmea, salgando-a para o festim do Messias.
Os rabinos acrescentam que se matará para esse festim o touro de Beemote, que é tão grande que come diariamente o feno de mil montanhas; a fêmea desse touro foi morta no princípio do mundo, para que uma espécie tão prodigiosa não se multiplicasse, o que apenas poderia ser prejudicial às outras criaturas; asseguram porém que o Eterno não a salgou, pois a vaca salgada não é tão boa como o Leviatã. Os judeus acrescentaram ainda tanta fé a todas essas fantasias rabínicas que é freqüente jurarem sobre a parte do boi de Beemote que lhes cabe.
Depois de idéias tão grosseiras sobre a vinda do Messias e sobre o seu reino, será para admirar que os judeus, tanto antigos como modernos, e vários mesmo dos primeiros cristãos, desgraçadamente imbuídos de todas essas loucuras, não tenham podido elevar-se à idéia da natureza divina do ungido do Senhor, nem atribuíram as qualidades de Deus ao Messias? Vede como os judeus se exprimem lá das alturas em sua obra intitulada Juaei Lusitani Quaestiones ad Christianos. “Reconhecer” – dizem – “um homem-Deus é forjar um monstro, um centauro, o composto estranho de duas naturezas que não se poderiam aliar”. Acrescentam que os profetas não ensinam absolutamente que o Messias deve ser homem-Deus, que fazem distinções expressas entre Deus e Davi, que consideram o primeiro, senhor, o segundo, servidor, etc.
Sabe-se muito bem que os judeus, escravos da letra, jamais penetraram como nós o sentido das Escrituras.
Quando o Salvador apareceu, os preconceitos judeus se ergueram contra ele. O próprio Jesus Cristo, para não revoltar seus espíritos cegos, parece extremamente reservado sobre o artigo de sua divindade: “Ele queria” – diz São Crisóstomo – “acostumar insensivelmente seus auditores a crer num mistério grandemente elevado acima da razão”. Se toma a autoridade de um Deus perdoando os pecados, isto revolta todos os que o testemunham; seus milagres mais evidentes não podem convencer de sua divindade aqueles mesmos em favor dos quais opera. Quando perante o tribunal do soberano sacrificador ele admite com modéstia ser filho de Deus, o sumo sacerdote rasga-lhe a roupa, rompendo em blasfêmias. Antes do enviado do Espírito Santo os apóstolos nem sequer suspeitavam a divindade de seu mestre; ele os interroga sobre o que pensa o povo a seu respeito: respondem-lhe que uns o tomam por Elias, outros por Jeremias ou qualquer outro profeta. São Pedro precisa de uma revelação particular para conhecer que Jesus é o Cristo, o filho de Deus vivente.
Os judeus, revoltados contra a divindade de Jesus Cristo, recorreram a toda sorte de meios para destruir esse grande mistério; deturpam o sentido dos seus próprios oráculos, ou não os aplicam ao Messias; pretendem que o nome de Deus, Elói, não é particular à divindade, sendo até concedido pelos autores sagrados aos juizes, aos magistrados, em geral aos elevados em autoridade; citam, com efeito, grande número de passos das Santas Escrituras que justificam esta observação, mas que não concedem a mínima atenção aos termos expressos dos antigos oráculos que falam do Messias.
Enfim, pretendem que se o Salvador, e depois dele os evangelistas, os apóstolos e os primeiros cristãos chamam Jesus o filho de Deus, esse termo augusto não significava nos tempos evangélicos senão o oposto dos filhos de Belial, isto é, homem de bem, servidor de Deus, em oposição a um malvado, um homem que não teme a Deus.
Se os judeus contestaram a Jesus Cristo a qualidade de Messias e sua divindade, nada esqueceram para torná-lo desprezível, para atirar sobre o seu nascimento, sua vida e sua morte, todo o ridículo e todo o opróbrio imaginado pela sua obstinação criminosa.
De todas as obras produzidas pela cegueira dos judeus, nada há de mais odioso e extravagante do que o antigo livro intitulado: Sepher Toldos Jeschut, extraído da poeira dos arquivos pelo sr. Wagenseil, no segundo tomo de sua obra intitulada: Tela ignea, etc.
É nesse Sepher Toldos Jeschut que se lê uma história monstruosa da vida do nosso Salvador, forjada com toda paixão e má fé possíveis. Assim, por exemplo, ousaram escrever que um tal Panter ou Pandera, habitante de Betlêm, se apaixonara por uma mulher casada com Jocanã. Teve desse comércio impuro um filho que foi chamado Jesuá ou Jesú. O pai desse menino foi obrigado a fugir, retirando-se para Babilônia. Quanto ao jovem Jesú, foi enviado à escola; mas, – acrescenta o autor – teve a insolência de levantar a cabeça e de se descobrir diante dos sacrificadores, em lugar de se apresentar à sua frente com a cabeça baixa e o rosto coberto, como era costume: ousadia que foi vivamente punida; o que deu lugar ao exame de seu nascimento, que se revelou impuro e em breve o expôs à ignomínia.
Esse detestável livro Sepher Toldos Jeschut era conhecido desde o segundo século; é citado por Celso com confiança e Orígenes refuta-o no nono capítulo.
Existe outro livro também intitulado Toldos Jeschut, publicado no ano de 1705 pelo Sr. Huldrich, que segue mais de perto o Evangelho da infância mas que comete, a todo momento, os anacronismos e faltas mais grosseiros. Faz nascer e morrer Jesus Cristo no reinado de Herodes, o Grande; pretende terem sido dirigidas a esse príncipe as queixas sobre o adultério de Panter e de Maria, mãe de Jesus.
O autor, que toma o nome de Jonatã, que se diz contemporâneo de Jesus Cristo e morador em Jerusalém, adianta que Herodes consultou os senadores de uma cidade da terra de Cesárea sobre o caso de Jesus Cristo. Não seguiremos um autor tão absurdo em todas as suas contradições.
No entanto é a favor de todas essas calúnias que os judeus se entretêm em seu ódio implacável contra os cristãos e contra o Evangelho; nada esqueceram eles para alterar a cronologia do Velho Testamento e para espalhar dúvidas e dificuldades sobre o tempo da vinda do nosso Salvador. Ahmed-ben-Cassum-al-Andacusi, mouro de Granada que viveu nos fins do século XVI, cita o antigo manuscrito árabe que foi encontrado junto a seis lâminas de chumbo, gravado em caracteres árabes, numa gruta perto de Granada. D. Pedro y Quinones, arcebispo de Granada, prestou ele próprio testemunho. Essas lâminas de chumbo que chamamos de Granada foram depois transladadas para Roma, onde, após um exame de vários anos, foram finalmente condenadas como apócrifas, sob o pontificado de Alexandre VII; não continham senão histórias fabulosas concernentes à vida de Maná e seu filho.
O nome de Messias, acompanhado do epíteto falso, ainda se dá a esses impostores que, em épocas diversas, procuraram mistificar a nação judaica. Houve desses falsos Messias antes mesmo da vinda do verdadeiro ungido de Deus. O sábio Gamaliel fala (52) de um certo Teodas cuja história se lê nas Antigüidades Judaicas de José; livro 20, capítulo 2. Jactava-se de haver passado o Jordão a pé seco; conseguiu grande número de adeptos que o seguiam; mas os romanos, caindo sobre sua tropa, dizimaram-na, cortaram a cabeça do desgraçado chefe e a expuseram em Jerusalém.
Gamaliel fala também de Judas, o Galileu, que é sem dúvida o mesmo mencionado por José, no capítulo 12 do segundo livro da Guerra das Judeus. Diz que esse falso profeta reunira quase trinta mil adeptos; porém a hipérbole é o característico do historiador judeu.
Desde os tempos dos apóstolos viu-se Simão, cognominado o Mágico (53), seduzir os habitantes de Samaria a ponto de o considerarem como a virtude de Deus.
No século seguinte, no ano 178 e 179 da era cristã, sob o império de Adriano, apareceu o falso Messias Barco Queba, à testa de um exército. O imperador enviou contra ele Júlio Severo, que depois de vários encontros encerrou os revoltosos na cidade de Biter; manteve um assedio obstinado e foi violentíssimo em suas represálias; Barco Queba foi preso e condenado à morte. Adriano julgou não poder prevenir as revoltas contínuas dos judeus, senão proibindo-os por édito de irem a Jerusalém; estabeleceu, mesmo, postos de vigilância nas portas dessa cidade, para proibir a entrada ao resto do povo de Israel.
Lemos em Sócrates, historiador eclesiástico(54), que no ano 434 apareceu na ilha de Cândia um falso Messias chamado Moisés. Dizia-se o antigo libertador dos hebreus, ressuscitado para os libertar de novo. Um século depois, em 530, houve na Palestina um falso Messias chamado Julião; anunciou-se como um grande conquistador que, à frente de sua nação, destruiria pelas armas todo o povo cristão; seduzidos por suas promessas, os judeus, armados, massacraram muitos cristãos. O imperador Justiniano enviou tropas contra ele. Travou-se batalha contra o falso Cristo: foi preso e condenado ao suplício extremo.
No princípio do século VIII Sereno, judeu espanhol, apresentou-se como Messias, pregou, teve discípulos e morreu como eles na miséria.
Vários falsos Messias surgiram no século XII. Apareceu um na França, sob o reinado de Luís, o Jovem; foi enforcado, ele e seus correligionários, sem que jamais se conhecessem os nomes nem do mestre nem dos discípulos.
O século XIII foi fertilíssimo de falsos Messias; contam-se sete ou oito, aparecidos na Arábia, na Pérsia, na Espanha e na Morávia. Um deles, que se fazia chamar David el Re, passou por ter sido um grande mártir, seduziu os judeus, vendo-se à testa de um partido considerável; mas esse Messias foi assassinado.
Jacques Zieglerne, da Morávia, que viveu em meados do século XVI, anunciou a próxima manifestação do Messias, nascido, segundo afirmava, havia catorze anos. Ele o tinha visto, dizia, em Estrasburgo, e guardava com cuidado uma espada e um cetro para lhos entregar quando ele estivesse em idade de ensinar.
No ano de 1624 outro Zieglerne confirmou a predição do primeiro.
Em 1666 Sabatê Seví, nascido em Alepo, se apresentou como o Messias predito pelos Zieglerne. Principiou por pregar nas estradas reais e no meio dos campos; os turcos riram-se dele, apesar da grande admiração dos seus discípulos. Parece que não agradou à maioria da nação hebraica, pois os chefes da sinagoga de Smirna lavraram contra ele uma sentença de morte; mas livrou-se da pena, sofrendo somente o medo e o exílio
Contratou três casamentos que não chegou a realizar, segundo se diz. Associou-se a um certo Natã Leví: este fez o papel do profeta Elias, que devia preceder o Messias. Dirigiram-se a Jerusalém e Natã anunciou Sabatê Seví como o libertador das nações. A população judaica declarou-se a seu favor; mas os que tinham alguma coisa a perder o anatematizaram.
Seví, para fugir à borrasca, retirou-se para Constantinopla, e de lá para Smirna. Natã Leví enviou-lhe quatro embaixadores que o reconheceram e saudaram publicamente na qualidade de Messias; essa embaixada teve certa influência no povo e mesmo em alguns doutores, que declararam Sabat Seví Messias e rei dos hebreus. Mas a sinagoga de Smirna condenou seu rei a ser empalado.
Sabatê pôs-se sob a proteção do cadi de Smirna, e teve em breve ao seu favor todo o povo judeu. Fez erguer dois tronos, um para ele e outro para sua esposa favorita; tomou o nome de rei dos reis e deu a José Seví, seu irmão, o de rei de Judá. Prometeu aos judeus assegurar a conquista do império otomano. Chegou mesmo à insolência de fazer riscar da liturgia judaica o nome do imperador, substituindo-o pelo seu. Foi remetido à prisão dos Dardanelos. Os judeus tornaram público que: só se poupara a sua vida por que os turcos sabiam muito bem que ele era imortal. O governador dos Dardanelos enriqueceu-se à custa dos presentes que os hebreus lhe prodigalizaram para visitar o seu rei, o seu Messias, prisioneiro que, entre grades, conservava toda a sua dignidade, deixando que lhe beijassem os pés.
Entretanto o sultão, que tinha a sua corte em Andrinopla, resolveu acabar com essa comédia; mandou chamar Seví e disse-lhe que se ele fosse Messias deveria ser invulnerável; Seví concordou. O grão senhor mandou que o colocassem como alvo das flechas de seus pagens; o Messias compreendeu logo nada ter de invulnerável e pretextou que Deus apenas o enviara para render testemunho à santa religião muçulmana. Fustigado pelos ministros da lei, tornou-se mafomista e morreu desprezado igualmente por judeus e muçulmanos: o que desacreditou de tal forma a profissão de falso Messias que Seví foi o último deles. (55).
METAMORFOSE, METEMPSICOSE

Não é muito natural que todas as metamorfoses de que a terra está repleta tenham feito imaginar, no Oriente, onde tudo foi imaginado, que nossas almas passam de um corpo a outro? Um ponto quase imperceptível torna-se um verme, esse verme se transforma em borboleta; uma bolota se transforma num tronco, um ovo num pássaro; a água torna-se nuvem e trovão; a madeira troca-se em fogo e cinza; tudo enfim, na natureza, parece metamorfose. Não tardamos em atribuir às almas, que olhamos como tênues figuras, o que vemos sensivelmente nos corpos mais grosseiros. A idéia da metempsicose é talvez o mais antigo dogma do universo conhecido, e reina ainda em grande parte da Índia e da China.
É ainda bastante natural que todas as metamorfoses de que somos testemunhas hajam produzido essas antigas fábulas que Ovídio recolheu em sua obra admirável. Os próprios judeus tiveram também suas metamorfoses. Se Níobe foi transformada em mármore, Edite, mulher de Ló, foi transmutada numa estátua de sal. Se Eurídice ficou nos infernos por ter olhado para trás, é também pela mesma indiscrição que essa mulher de Ló foi privada da natureza humana. O burgo habitado por Baucis e Filêmon, na Frigia, transformou-se em um lago; a mesma coisa sucedeu a Sodoma. As filhas de Anjo transformavam a água em óleo; temos nas Escrituras uma metamorfose mais ou menos parecida, porém mais verdadeira e mais sagrada. Cadmo foi transformado em serpente; a virgem de Aarão tornou-se serpente também.
Os deuses também mudam-se muitas vezes em homens; os judeus jamais viram anjos senão sob a forma humana: os anjos comeram na casa de Abraão. Paulo, em sua Epístola aos Coríntios, diz que o anjo de Satã lhe deu bofetadas: Angelos Satana me colaphisei.
MILAGRES

Segundo a energia do termo, um milagre é uma coisa admirável. Nesse caso, tudo é milagre. A ordem prodigiosa da natureza, a rotação de cem milhões de globos ao redor de um milhão de sóis, a atividade da luz, a vida dos animais, constituem perpétuos milagres.
Segundo as idéias aceitas, chamamos milagre à violação dessas leis divinas e eternas. Assim, quando houver um eclipse do Sol durante a Lua cheia, quando um morto fizer a pé duas léguas de caminho levando a cabeça de baixo do braço, isto quer dizer que sucedeu um milagre.
Vários físicos afirmam que, nesse sentido, não existe milagre algum, e eis aqui seus argumentos.
Um milagre é a violação das leis matemáticas, divinas, imutáveis, eternas. Mediante essa única exposição, um milagre é uma contradição nos termos. Uma lei não pode ser mutável a violada. Mas uma lei, diz-se-lhes, sendo estabelecida por Deus mesmo, não poderá ser suspensa pelo seu autor? Têm a ousadia de responder que não e que é impossível que o Ser infinitamente sábio tenha estabelecido leis para as violar. Um homem, dizem eles, não desmonta sua máquina senão para fazê-la melhor; ora, é claro que, sendo Deus, ele fez essa imensa máquina o melhor que pode: se viu que haveria alguma imperfeição, resultante da natureza da matéria, ele a preveniu desde o começo; assim jamais há de mudar nada.
Demais, Deus nada pode fazer sem razão; ora, que razão poderia levá-lo a desfigurar por algum tempo a sua própria obra? É em favor dos homens, diz-se-lhes. Será, pois, ao menos em favor de todos os homens respondem eles: pois é impossível conceber que a natureza divina trabalhe para alguns homens em particular e não para todo o gênero humano; mesmo o gênero humano é pouca coisa: é muito menos do que um pequeno formigueiro em comparação com todos os entes que preenchem a imensidão. Ora, não é a mais absurda das loucuras imaginar que o Ser Infinito invertesse em favor de três ou quatro centenas de formigas nesse pequeno pedaço de lodo, o movimento eterno dessas molas imensas que fazem mover o inteiro universo?
Mas suponhamos que Deus desejou distinguir um pequeno número de homens com favores particulares: seria preciso que mudasse tudo o que estabeleceu para todos os tempos e todos os lugares. Ele não tem, por certo, necessidade alguma dessa mudança, dessa inconstância, para favorecer suas criaturas: seus favores estão encerrados em suas próprias leis. Ele tudo preveniu, tudo ordenou para elas; todas obedecem irrevogavelmente à forca que imprimiu para todo o sempre na natureza.
Por que faria Deus um milagre? Para realizar um plano qualquer concernente a alguns seres vivos! Portanto: não pude, com os meus decretos divinos, com minhas leis eternas, preencher um certo plano; vou mudar minhas idéias eternas, minhas leis imutáveis, e tratar de executar o que não consegui fazer por elas. Tal fato seria um sinal de sua fraqueza, e não de sua potência. Seria, parece, nele, a mais inconceptível contradição. Portanto, ousar supor que Deus realiza milagres é realmente insultá-lo (se é que os homens podem insultar Deus); é dizer-lhe: “Sois um ente frágil e inconseqüente”. Portanto, é absurdo crer em milagres, é desonrar de certo modo a Divindade.
Insiste-se com esses filósofos, dizendo-lhes: “É inútil exaltardes a imutabilidade do Ente Supremo, a eternidade de suas leis, a regularidade de seus mundos infinitos; nosso pequeno pedaço de lodo está repleno de milagres; as histórias estão tão repletas de prodígios que estes se tornam acontecimentos naturais. As filhas do sumo sacerdote Agno trocavam tudo o que bem entendiam em trigo, em vinho ou óleo; Atálida, filha de Mercúrio, ressuscitou várias vezes; Esculápio ressuscitou Hipólito; Hércules arrancou Alceste dos braços da Morte; Éros voltou ao mundo após ter passado quinze dias nos infernos; Rômulo e Remo nasceram de um deus e uma vestal. O Paládio tombou dos céus na cidade de Tróia; a cabeça de Orfeu concedia oráculos depois de sua morte; as muralhas de Tebas se construíram por si próprias ao som das flautas dos gregos; as curas realizadas no templo de Esculápio eram numerosas, e temos ainda monumentos repletos de nomes de testemunhas oculares dos milagres de Esculápio.
“Citai-me um único povo no qual não se tenham operado prodígios incríveis, principalmente nos tempos em que mal se sabia ler e escrever”.
Os filósofos não respondem a essas objeções senão rindo e dando de ombros; mas os filósofos cristãos dizem: “Cremos perfeitamente nos milagres operados em nossa santa religião; cremo-los mediante nossa fé, e não pela nossa razão, que nos guardamos bem de ouvir: porque, quando fala a fé, sabemos que a razão não deve dizer palavra. Temos uma crença firme e integral nos milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos, mas permiti-nos duvidar um pouco de vários outros; permiti, por exemplo, que suspendamos nosso julgamento sobre o que concerne a um homem simples ao qual se deu o nome de grande. Ele afirma que um pequeno monge estava tão acostumado a realizar milagres que o prior lhe proibira exercer seu talento. O pequeno monge obedeceu; mas tendo visto um pobre telhador cair do alto de um telhado, ficou indeciso entre salvar-lhe a vida e manter a santa obediência. Ordenou apenas que o telhador permanecesse suspenso a meio caminho do solo, até nova ordem, e correu de pressa a contar ao seu prior o estado das coisas. O prior absolveu-o do pecado que cometera iniciando um milagre sem licença e permitiu que o terminasse, contanto que nunca mais o repetisse. Concede-se aos filósofos desconfiar um pouco dessa história”.
Mas como ousaríeis negar, diz-se-lhes, que S. Gervásio e S. Protásio tenham aparecido em sonho a Santo Ambrósio, que lhe tenham ensinado o lugar onde estavam escondidas as suas relíquias, que Sto. Ambrósio as tenha desenterrado e que elas curaram um cego? Sto. Agostinho estava nessa época em Milão; é ele quem nos conta o milagre: Immenso populo teste, diz em sua Cidade de Deus, livro 22. Eis um milagre dos melhor averiguados. Os filósofos dizem que não acreditam em nada disso; que Gervásio e Protásio não apareceram a pessoa alguma; que pouco importa ao gênero humano saber onde estão os restos de suas carcassas; que não concedem maior crédito a esse cego que ao de Vespasiano; que é um milagre inutilíssimo; que Deus nada faz de inútil; e se mantêm firmes em seus princípios. Meu respeito a S. Gervásio e S. Protásio não me permite ser do pensar desses filósofos: apenas registo sua incredulidade. Fazem grande caso da passagem de Luciano que se encontra na Morte de Peregrino. “Quando um trapaceiro chega a se transformar em cristão, é porque tem certeza de ficar rico”. Mas como Luciano é um autor profano, não deve ter nenhuma autoridade entre nós.
Esses filósofos não podem se resolver a crer nos milagres operados no segundo século. Perdem tempo as testemunhas oculares em escrever que o bispo de Smirna, S. Policarpo, tendo sido condenado a ser queimado, e sendo atirado às chamas, ouviram uma voz do céu gritar: “Coragem, Policarpo! Sê forte, mostra que és homem!”; que então as chamas da fogueira se separaram de seu corpo, formando um pavilhão de fogo ao redor de sua cabeça, e que do meio da fogueira saiu uma pombinha; enfim, foi necessário decepar a cabeça de Policarpo. “Que vale um milagre desses?” – dizem os incrédulos: – “por que motivo as chamas perderam sua natureza e por que o machado do carrasco não perdeu a sua? Como se explica que tão elevado número de mártires tenham saído sãos e salvos do óleo fervente, e não puderam resistir ao gume do facão? Responde-se que é a vontade de Deus. Mas os filósofos desejariam ter visto todas essas coisas com os seus próprios olhos antes de acreditar.
Os que fortificam seus raciocínios pela ciência vos responderão que os padres da igreja perceberam várias vezes por si próprios já não se realizarem, os milagres de seus tempos. S. Crisóstomo diz expressamente: “Os dons extraordinários do espírito eram dados mesmo aos indignos, porque então a igreja necessitava de milagres; hoje, porém, eles não são concedidos nem mesmo aos dignos, pois a igreja já não os necessita”. Em seguida ele concorda em que não há mais pessoas capazes de ressuscitar mortos, nem mesmo que curem os doentes.
O próprio Sto. Agostinho, apesar do milagre de Gervásio e de Protásio, diz em sua Cidade de Deus: “Por que não se repetem hoje os milagres de outrora?” E ele mesmo explica as razões: “Cur, inquiunt, nunc illa miracula quae praedicatis facta esse none fiunt? Possem quidem, dicere necessaria prius fuisse quam crederet mundus, ad hoc ut crederet mundus”
Objeta-se aos filósofos que Sto. Agostinho, não, obstante tal confissão, fala no entanto de um velho remendão Hipônio que, tendo perdido sua casaca, foi pregar na capela dos vinte mártires; que ao regressar encontrou um peixe em cujo corpo. estava um anel da ouro, e que o cozinheiro que fritou o peixe disse ao remendão:, “Eis o que os vinte mártires vos dão”
A isso respondem os filósofos que nada existe nessa história que contradiga as leis da natureza, que a física não chega a ser abalada pelo fato de um peixe encerrar um anel de ouro e que um cozinheiro tenha dado esse anel a um remendão; que não há nisso nenhum milagre.
Se se lembrar a esses filósofos que segundo S. Jerônimo, em sua Vida do Eremita Paulo, esse eremita teve várias conversações com os sátiros e faunos, que um corvo lhe levava todos os dias, durante trinta anos, a metade de um pão para o seu jantar e um pão inteiro no dia em que Sto. Antônio foi visitá-lo, eles poderão responder ainda que esse grande fato não se choca com a física, que sátiros a faunos podem ter existido e que, em todo caso, se essa história é uma puerilidade, nada tem de comum com os verdadeiros milagres do Salvador e seus apóstolos. Vários bons cristãos combateram a história de S. Simão Estilita, escrita por Teodoreto. Muitos milagres que passam por autênticos na igreja grega foram postos em dúvida por muitos latinos, da mesma forma que vários milagres latinos foram desacreditados pela igreja grega; vieram em seguida os protestantes, que maltrataram os milagres tanto de uma como de outra igreja.
Um sábio jesuíta (56) que pregou durante muito tempo nas Índias lamenta-se de que nem ele nem seus confrades jamais puderam fazer um milagre. Xavier lamenta-se em muitas de suas cartas de não possuir o dom linguístico; diz que entre os japoneses ele é como uma estátua muda. Entretanto, os jesuítas escreveram que ele ressuscitou oito mortos; é muito; mas é também preciso considerar que ele os ressuscitou há cem mil léguas daqui. Ao depois houve gente que pretendeu ser a abolição dos jesuítas na França um milagre muito maior do que os de Xavier e Inácio.
Seja como for, todos os cristãos convêm em que os milagres de Jesus Cristo e dos apóstolos são de uma verdade incontestável, mas que se pode duvidar de todo ponto de alguns milagres feitos nos últimos tempos e que não têm uma autenticidade positiva.
Desejar-se-ia, por exemplo, para que um milagre fosse bem constatado, que se realizasse na presença da Academia das Ciências de Paris, ou da Sociedade Real de Londres, e da Faculdade de Medicina, assistido por um destacamento do regimento de guardas a fim de conter a multidão, que poderia, com uma indiscrição, impedir a prática do milagre.
Perguntou-se um dia a um filósofo o que diria se visse o Sol deter sua marcha, isto é, se o movimento da Terra ao redor desse astro cessasse, se todos os mortos ressuscitassem e se todas as montanhas se precipitassem ao mar, tudo para provar alguma importante verdade, como por exemplo a graça versátil. “Que diria?” – respondeu o filósofo: – “Tornar-me-ia um maniqueu, diria que existe um princípio que desfaz o que o outro fez”.
MOISÉS

Vários sábios julgaram que o Pentateuco não pode ter sido escrito por Moisés. Dizem que da própria Escritura se evidencia que o primeiro exemplar conhecido foi encontrado no tempo do rei Josias, e que esse único exemplar foi apresentado ao rei pelo secretário Safã. Ora, entre Moisés e essa aventura do secretário Safã existem mil cento e sessenta e sete anos pelo cômputo hebraico. Porquanto Deus apareceu a Moisés no espinheiro ardente no ano do mundo dois mil duzentos e treze, e o secretário Safã publicou o Livro da Lei no ano do mundo três mil trezentos e oitenta. Esse livro encontrado sob o reinado de Josias foi desconhecido até o retorno da sujeição a Babilônia; e diz que foi Esdras, inspirado de Deus, que deu à luz todas as Santas Escrituras.
Ora, seja Esdras ou outro quem escreveu esse livro, isso é absolutamente indiferente desde que o livro foi inspirado. Não está dito no Pentateuco que Moisés tenha sido seu autor; é pois permitido atribuí-lo a outro homem qualquer, a quem o espírito divino o terá ditado.
Alguns contraditores acrescentam que nenhum profeta citou os livros do Pentateuco, que não é referido nem nos Salmos nem nos livros atribuídos a Salomão, nem em Jeremias nem em Isaías nem, enfim, em livro canônico algum. Os termos que respondem aos de Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio, não são encontrados em nenhum escrito, quer seja do Novo ou do Velho Testamento
Outros mais ousados formularam as seguintes questões:
1a. – Em que língua Moisés teria escrito, estando num deserto selvagem? Não poderia ter sido senão em egípcio: porque, por esse próprio livro, vê-se que Moisés e todo o seu povo nasceram no Egito. É provável que não falassem outra língua. Os egípcios não se serviam ainda do papiro, os hieróglifos eram gravados sobre mármore ou madeira. Diz-se até que as tábuas dos mandamentos foram gravadas sobre pedra. Portanto teria sido necessário gravar cinco volumes sobre pedras polidas, o que requereria esforços e tempo prodigiosos.
2a. – É possível que num deserto onde o povo judeu não tinha nem sapateiros nem alfaiates, e onde o Deus dos universos foi obrigado a realizar um milagre contínuo para conservar as velhas roupas e sapatos dos judeus, se tenham encontrado homens suficientemente hábeis para gravar os cinco livros do Pentateuco sobre mármore ou madeira? Responder-se-á que, entretanto, foram encontrados operários capazes de fazer um bezerro de ouro, e que em seguida reduziram o ouro em pá; que construíram um tabernáculo; que o adornaram com trinta e quatro colunas de bronze com capitéis de prata; que urdiram e recamaram véus de linho, de jacinto, de púrpura e escarlate; porém esses próprios fatos fortificam a opinião dos contraditores. Respondem não ser possível que, num deserto onde tudo faltava, se houvessem feito obras tão requintadas; que teria sido preciso começar por fazer sapatos e túnicas; que os que carecem do necessário não se podem entregar ao luxo, e que é evidente contradição afirmar a existência de fundidores, gravadores, escultores, tintureiros, recamadores, quando não se tinham nem roupas, nem sandálias, nem pão.
3a. – Se Moisés houvesse escrito o primeiro capítulo do Gênesis, ter-se-ia proibido a todos os jovens a leitura desse primeiro capítulo? Ter-se-ia respeitado tão pouco o legislador? Se fosse Moisés quem disse que Deus pune a iniqüidade dos pais até a quarta geração, teria Ezequiel dito o contrário? 4a – Se Moisés houvesse escrito o Levítico, poderia ter-se contradito no Deuteronômio? O Levítico proíbe casar com as cunhadas, o Deuteronômio o ordena.
5a. – Teria Moisés falado em seu livro a respeito de cidades que ainda não existiam no seu tempo? Teria dito que as cidades que para ele estavam ao oriente do Jordão, ficavam ao ocidente?
6a. – Teria ele registado quarenta e oito cidades levíticas num país onde jamais houve dez cidades, e num deserto por onde errou sempre sem ter uma casa?
7a.- Teria prescrito regras para os reis de Deus quando não só não existiam reis entre esse povo como, pelo contrário, estava ele em estado de completa ruína, sendo provável que nunca os possuísse? Como! Teria Moisés ditado preceitos para a conduta de reis que não vieram senão quinhentos anos depois dele, sem nada deixar dito aos juizes e pontífices que o sucederam? Esta reflexão não induz a crer que o Pentateuco foi composto nos tempos dos reis e que as cerimônias instituídas por Moisés apenas foram uma tradição?
8a. – Como pode ter ele dito aos judeus: “Eu vos fiz sair em número de 600 mil combatentes da terra do Egito, sob a proteção de vosso Deus?” Não lhe teriam os judeus respondido: “É preciso que tenhais sido bem tímido para não nos atirar contra o faraó do Egito; ele não nos poderia opor um exército de duzentos mil homens. Jamais o Egito teve tal número de soldados em pé de guerra; nós os teríamos vencido facilmente, seríamos os donos do seu país. Como o Deus que vos fala assassinou para nos agradar todos os primogênitos do Egito, e, se houver nesse país trezentas mil famílias, isto faz trezentos mil homens mortos numa noite, a fim de nos vingar; e vós não imitastes o vosso Deus! E vós não nos destes esse país fértil que ninguém poderia defender! Vós nos fizestes sair do Egito de mãos a abanar, para fazer que morrêssemos nos desertos, entre os precipícios e as montanhas! Teríeis podido, ao menos, conduzir-nos diretamente a essa terra de Canaã sobre a qual não temos direito algum, mas que nos prometestes e na qual ainda não pudemos entrar.
“Era natural que da terra de Gessen marchássemos para Tiro e Sidon, ao longo do Mediterrâneo; mas vós nos fizestes passar quase todo o istmo de Suez; vós nos fizestes penetrar no Egito, quase passar Menfis, e nós nos encontramos em Beel Sefon, nas margens do Mar Vermelho, voltando as costas à terra de Canaã, tendo caminhado 80 léguas nesse Egito que desejávamos evitar, e enfim prestes a perecer entre o mar e o exército do faraó! “Se houvésseis desejado livrar-nos dos nossos inimigos não teríeis tomado outra rota e outras medidas? Deus nos salvou com um milagre: o mar foi aberto para que passássemos; mas, após um tal favor, seria preciso deixar-nos morrer à fome e à fadiga nos horríveis desertos de Etam, de Gades Barne, de Mara, de Elim, de Orebe e de Sinai? Todos os nossos pais pereceram nessas solidões atrozes, e vós vindes dizer, depois de quarenta anos, que Deus teve um cuidado particular com nossos pais!”?
Eis o que esses judeus murmuradores, esses filhos injustos dos judeus vagabundos mortos nos desertos poderiam ter dito a Moisés se ele lhes houvesse lido o Êxodo e o Gênesis. E o que não deveriam eles dizer e fazer a respeito do bezerro de ouro! “Como! Ousais dizer-nos que vosso irmão fez um bezerro de ouro para nossos pais quando estáveis com Deus na montanha, vós que ora nos dizeis ter falado com Deus face a face e ora que apenas o vistes pelas costas! Mas, enfim, vós estivestes com esse Deus e vosso irmão funde num só dia um bezerro de ouro e no-lo dá para que o adoremos; e, em lugar de punir o vosso indigno irmão, fazeis dele nosso pontífice e ordenais a vossos levitas degolar vinte mil homens do vosso povo! Te-lo-iam sofrido nossos pais? Dizeis-nos que, não contente com essa carnificina incrível, fizestes ainda massacrar vinte e quatro mil dos vossos pobres acompanhantes porque um deles se deitara com uma madianita, quando vós mesmo desposastes uma madianita; e acrescentais que sois o mais doce de todos os homens! Ainda algumas ações dessa doçura e ninguém restaria para contar a história.
“Não, se fôsseis capaz de uma tal crueldade, se a tivésseis podido exercer, seríeis o mais bárbaro de todos os homens, e todos os suplícios seriam insuficientes para expiar um tão estranho crime.”
São essas, pouco mais ou menos, as objeções feitas pelos sábios àqueles que julgam Moisés autor do Pentateuco. Mas responde-se-lhes que os caminhos de Deus não são os dos homens; quer Deus experimentou, conduziu e abandonou o seu povo por uma sabedoria que nos é desconhecida; que os próprios judeus durante dois mil anos julgaram haver sido Moisés o autor desses livros; que a igreja, que sucedeu à sinagoga e que é infalível como ela, decidiu esse ponto de controvérsia, e que os sábios devem calar-se quando a igreja fala.
PÁTRIA

Pátria é um conjunto de várias famílias; e, como se sustenta comumente a própria família por amor próprio, quando não se tem um interesse contrário pelo mesmo amor próprio se sustenta sua cidade ou sua aldeia que se chama sua pátria.
Quanto mais essa pátria se torna grande menos é amada, porque o amor repartido se debilita e é impossível amar enternecidamente uma família muito numerosa, que apenas se conhece. Aquele que se queima na ambição de ser edil, tribuno, pretor, cônsul, ditador, grita que ama a sua pátria, e não ama senão a si próprio. Cada qual deseja estar seguro de poder deitar-se, de ter sua cama própria, sem que outro homem se arrogue o poder de o mandar deitar-se alhures; cada um deseja estar seguro de sua fortuna e de sua vida. Todos formam assim os mesmos desejos, e então o interesse particular se transforma em interesse geral: não se vota senão por si próprio quando se vota pela república.
É impossível existir sobre a terra um estado que não seja governado a princípio como república: é a marcha natural da natureza humana. Algumas famílias se reúnem, de início, contra os ursos e contra os lobos; a que tem sementes de trigo fornece-as, em troca, àquela que apenas tem lenha.
Quando descobrimos a América encontramos todas as tribos divididas em repúblicas; apenas existiam dois remos em toda essa parte do mundo. De milhares de nações somente duas encontramos subjugadas.
Foi assim, também, no Velho Mundo; tudo era república na Europa antes dos régulos de Etrúria e Roma. Encontramos ainda hoje repúblicas na África, – Trípoli, Tunis, Argélia, na nossa parte setentrional, são repúblicas de bandidos. Os hotentotes do meio dia vivem ainda como se diz que viveram nos primeiros anos do mundo, livres, iguais entre eles, sem senhores, sem submissões, sem dinheiro e quase sem necessidades.
A carne de seus carneiros nutre-os, sua pele os veste, choças de madeira e de pedra são seus refúgios; são os mais grosseiros de todos os homens, mas não o sentem, vivem e morrem mais docemente do que nós.
Restam na nossa Europa oito repúblicas sem monarcas: Veneza, Holanda, Suíça, Genebra, Lucas, Ragusa, Gênova e São Marinho(57). Pode-se considerar a Polônia, a Suécia, a Inglaterra como repúblicas sob um rei; mas a Polônia é a única que usa o seu nome.
Pois bem, o que será melhor – que vossa pátria seja um estado monárquico ou um estado republicano? Há quatro mil anos se discute essa questão. Perguntai a solução aos ricos, eles preferem a aristocracia; interrogai o povo, ele quer a democracia: apenas os reis preferem a realeza. Como, portanto, é possível que quase toda a terra seja governada por monarcas? Perguntai-o aos ratos que propuseram pendurar uma campainha no pescoço do gato (58). Mas, na verdade, a verdadeira razão é, como se disse, que os homens são mui raramente dignos de se governar por si próprios.
É deplorável que quase sempre para ser bom patriota deva-se ser inimigo do resto dos homens. O velho Catão, esse ótimo cidadão, dizia sempre no senado: “Tal é minha opinião, e que se arruine Cartago”. Ser bom patriota é desejar que sua cidade se enriqueça pelo comércio e seja poderosa pelas armas. É claro que um país não pode ganhar sem que outro perca e que não pode vencer sem fazer desgraçados.
Tal é, pois, a condição humana, que desejar a grandeza do seu país é desejar mal aos seus vizinhos. Aquele que pretendesse que a sua pátria não fosse jamais nem menor nem maior, nem mais rica nem mais pobre, seria o cidadão do universo.
PEDRO

Em italiano Piero ou Pietro; em espanhol Pedro; em latim Petrus; em grego Petros; em hebraico Cepha. Por que os sucessores de Pedro tiveram tantos poderes no Ocidente e nenhum no Oriente? É o mesmo que perguntar por que os bispos de Wurtzburg e de Salzburg se atribuíram direitos regalianos nos tempos da anarquia, de passo que os bispos gregos sempre foram súditos. O tempo, a ocasião, a ambição de uns e a fraqueza de outros tudo fizeram e farão neste mundo.
A essa anarquia ajuntou-se a opinião e a opinião é a rainha dos homens. Não que na realidade tenham uma opinião bem determinada, mas palavras fazem-lhe as vezes.
Conta-se no Evangelho que Jesus disse a Pedro: “Dar-te-ei as chaves do reino dos céus.” Os partidários do bispo de Roma sustentaram, pelo século XI, que quem dá o mais dá o menos; que os céus rodeiam a terra e que Pedro, tendo as chaves do continente, tinha também as chaves do conteúdo. Se se entender por céus todas as estrelas e todos os planetas, é evidente que, segundo Tomásio, as chaves dadas a Simão Barjone, cognominado Pedro, eram um passaporte. Se se entender por céus as nuvens, a atmosfera, o éter, o espaço em que rolam os planetas, não existem serralheiros, segundo Meúrsio, capazes de fazer uma chave para essas portas.
As chaves na Palestina eram uma cavilha de madeira que se ligava a uma correia. Jesus disse a Barjone: – “O que ligares na terra será ligado nos céus” – Os teólogos do papa concluíram que os papas tinham recebido o direito de ligar e desligar os povos do juramento de fidelidade feito aos seus reis e de dispor ao seu bel prazer de todos os reinos. É concluir magnificamente. As comunas, nos estados gerais da França, em 1302 dizem em seu requerimento ao rei que “Bonifácio VIII era um b... que pensava que Deus prendia e ligava ao céu o que Bonifácio ligava na terra”. Um famoso luterano da Alemanha (segundo penso, Melanchton) custava um pouco a digerir que Jesus houvesse dito a Simão Barjone, Cefa ou Cefas: “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei o meu templo, minha igreja”. Não podia conceber que Deus tivesse empregado semelhante jogo de palavras, uma agudeza tão extraordinária, e que a potência do papa fosse baseada num trocadilho.
Pedro passou por ter sido bispo de Roma; sabe-se porém que nesse tempo e muito depois não houve bispo algum particular. A sociedade cristã só tomou forma em fins do segundo século.
Pode ser que Pedro tenha feito a viagem a Roma; pode ser, também, que tenha sido posto na cruz, com a cabeça para baixo, não obstante não ser esse o costume; não há, porém, prova alguma de tudo isso. Temos uma carta firmada por ele, na qual diz estar em Babilônia: alguns canonistas judiciosos pretenderam que por Babilônia se deveria entender Roma. Assim, supondo-se que ele a tenha datado de Roma, poder-se-ia concluir que a carta foi escrita em Babilônia. Durante muito tempo tiraram-se conclusões iguais e é assim que o mundo foi governado.
Em Roma pagou-se regiamente a um santo homem por uma simônia; perguntaram-lhe se acreditava em que Simão Pedro estivera no país; respondeu: “Não vejo que Pedro aí tenha estado, mas Simão, tenho a certeza” (59).
Quanto à pessoa de Pedro, é preciso levar em consideração que Paulo não é o único que se escandalizou pela sua conduta; foi contestado face a face, ele e seus sucessores. Esse Paulo reprovava-lhe acremente o comer carnes. proibidas, isto é, porco, presunto, lebre, enguia, ixião e Pedro defendeu-se dizendo que vira o céu abrir-se na sexta hora proximamente, e uma grande toalha que descia dos quatro cantos do céu, a qual estava repleta de enguias, de quadrúpedes e pássaros, e que a voz de um anjo gritara: “Matai e comei”. É, segundo as aparências, essa mesma voz que gritou a tantos pontífices: “Matai tudo e comei a substância do povo”, diz Wollaston.
Casaubon não podia aprovar a maneira por que Pedro tratou o bom Ananias e Safira, sua mulher. Com que direito, diz Casaubon, um judeu escravo dos romanos pende ordenar ou admitir que todos os que acreditassem em Jesus deveriam vender suas herdades e trazer o resultado de sua venda a seus pés? Se algum anabatista, em Londres ordenasse a mesma coisa a seus irmãos, não seria preso como sedutor sedicioso, como ladrão que não se deixaria de enviar a Tyburn? Não é horrível fazer Ananias morrer porque, tendo vendido seus fundos e dado o dinheiro a Pedro, reteve para si e sua mulher alguns escudos a fim de não morrer de fome? Apenas Ananias foi morto, sua mulher chegou. Pedro, em vez de adverti-la caridosamente de que acabava de matar seu marido de apoplexia por haver guardado alguns óbulos e de lha recomendar que tomasse cuidado consigo própria,. deixa-a cair numa armadilha. Pergunta-lhe se seu marido deu todo seu dinheiro aos santos. A boa mulher responde que sim e recebe morte instantânea. Isso é duro.
Conríngio pergunta por que Pedro, que matou assim esses que lhe deram todos os seus bens, não mandou antes matar todos os doutores que fizeram Jesus Cristo morrer e que o fustigaram a ele próprio mais de uma vez? Ó Pedro! fazeis morrer dois cristãos que vos deram sua esmola e deixais viver aqueles que crucificaram vosso Deus!
Por muito que pareça que Conríngio não estava em país de inquisição ao fazer esses quesitos ousados, Erasmo, a propósito de Pedro, acentuou uma coisa bem singular: que o chefe da religião cristã começou seu apostolado por renegar Jesus Cristo, e que o primeiro pontífice dos judeus começara seu ministério por construir um bezerro de ouro e adorá-lo.
Seja como for, Pedro nos é descrito como um pobre que catequizava pobres. Ele se parece com esses fundadores de ordens que viviam na indigência e cujos sucessores se tornaram grandes senhores.
O papa, sucessor de Pedro, ora ganhou, ora perdeu; mas ainda lhe restam cinqüenta milhões de homens mais ou menos sobre a terra, submissos em muitos pontos às suas leis, além de seus súdito imediatos.
Ter um senhor a trezentas ou quatrocentas léguas da própria casa; esperar para pensar que esse homem tenha parecido pensar; não ousar julgar em último recurso um processo entre alguns de seus concidadãos atendendo às comissários nomeados por esse estrangeiro; não ousar tomar posse dos campos e das vinhas que se obtiveram do próprio rei sem pagar uma soma considerável a esse senhor estrangeiro; violar as leis de seu país que proíbem desposar uma sobrinha, e casar com ela legitimamente pagando a esse senhor estrangeiro uma soma ainda mais considerável; não ousar cultivar seu campo no dia em que esse estrangeiro quer que se celebre a memória de um desconhecido que ele instalou no céu por sua própria conta; é isso mais ou menos o que significa admitir um papa; são essas as liberdades da igreja galicana.
Há alguns outros povos que levam ainda mais longe sua submissão. Vimos em nossos dias um soberano (60) solicitar ao papa a permissão de fazer julgar pelo seu real tribunal alguns monges acusados de parricídio, não obter tal permissão e não ousar cumprir o julgamento. Sabe-se perfeitamente que outrora os direitos dos papas iam mais longe; estavam colocados muito acima dos deuses da antigüidade; pois esses deuses passavam por dispor dos impérios, e os papas dispunham deles de fato.
Disse Esturbino que se pode perdoar àqueles que duvidam da divindade e da infalibilidade do papa quando se reflete:
Que quarenta cismas profanaram o púlpito de S. Pedro e vinte e sete o ensangüentaram;
Que Estevão VII, filho de um padre, desenterrou o corpo de Formoso, seu predecessor, e fez cortar a cabeça do cadáver;
Que Sérgio III, réu convicto de assassinato, teve um filho de Marózia, o qual herdou do papado;
Que João X, amante de Teodora, foi estrangulado em seu leito;
Que João XI, filho de Sérgio III, foi célebre pela sua devassidão;
Que João XII foi assassinado em casa da amante;
Que Benedito IX, comprou e revendeu o pontificado;
Que Gregório VII foi o autor de quinhentos anos de guerras civis sustentadas por seus sucessores;
Que enfim, entre tantos papas ambiciosos, sanguinários e devassos, houve um, Alexandre VI, cujo nome é pronunciado com o mesmo horror que os de Nero e Calígula.
É uma prova, diz-se, da divindade de seus caracteres, o terem subsistido a tantos crimes; mas se os califas tivessem tido uma conduta ainda mais afrontosa, teriam então sido ainda mais divinos. É assim que arrazoa Dérmio; porém os jesuítas lhe responderam.
PRECONCEITOS

O preconceito é uma opinião sem julgamento. Assim em toda a terra inspiram-se às crianças todas as opiniões que se desejam antes que elas as possam julgar.
Existem preconceitos universais, necessários, e que representam a própria virtude. Por toda parte ensina-se às crianças reconhecer um Deus remunerador e vingador; a respeitar, a amar seu pai e sua mãe; a considerar o roubo como um crime, a mentira interessada como um vício, antes que elas possam adivinhar o que vem a ser um vício e uma virtude.
Há pois ótimos preconceitos: são os que o julgamento ratifica quando se raciocina.
Sentimento não é mero preconceito, é alguma coisa muito mais forte. Uma mãe não ama a seu filho porque se lhe disse que o deve amar; ela o quer extremosamente mesmo contra sua vontade. Não é absolutamente por preconceito que correis em socorro de uma criança desconhecida prestes a cair num precipício ou a ser devorada por uma fera.
É porém por preconceito que respeitareis um homem revestido de certos hábitos, andando gravemente, falando da mesma forma. Vossos pais vos disseram que devíeis inclinar-vos diante desse homem: vós o respeitais antes de saber se merece vossos respeitos; cresceis em idade e conhecimentos – percebeis que esse homem é um charlatão empedernido de orgulho, de interesse e artifício; desprezais o que reverenciáveis, e o preconceito cede lugar ao julgamento. Acreditastes por preconceito nas fábulas com que embalaram vossa infância; disseram-vos que os titãs moveram guerra aos deuses e que Vênus foi amante de Adónis; aos doze anos tomastes tais fábulas por verdades, agora, aos vinte anos, como alegorias engenhosas.
Examinemos em poucas palavras as diferentes espécies de preconceitos, a fim de pôr nossos negócios em ordem. Seremos, talvez, como aqueles que, no tempo do sistema de Law, perceberam que tinham calculado riquezas imaginárias.
Preconceitos dos sentidos

Não é curioso que nossos olhos nos enganem sempre, mesmo quando temos a melhor vista do mundo, e que ao contrário nossos ouvidos não nos enganem nunca? Se vosso ouvido bem conformado ouvir: – “Sois bela, eu vos amo,” estais bem certa de que não vos disseram – “Odeio-vos, sois feia”. Mas vedes um espelho liso: está demonstrado que vos enganais, é uma superfície muito desigual. Vedes o Sol com mais ou menos dois pés de diâmetro: está demonstrado que ele é um milhão de vezes maior do que a Terra.
Parece que Deus tenha posto a verdade em vossos ouvidos e o erro em vossos olhos; estudai porém a ótica, vereis que Deus não vos enganou de forma alguma, e que é impossível que os objetos vos pareçam diferentes do que os podeis ver no estado presente das coisas.
Preconceitos físicos

O Sol se ergue, a Lua também, a Terra está imóvel: – eis aí preconceitos físicos naturais. Mas que as lagostas sejam boas para o sangue, pois estando cozidas são vermelhas como ele; que as enguias curem a paralisia, pois se agitam; que a Lua influa nas nossas doenças, pois um dia observou-se que um doente teve um aumento de febre durante o curso da Lua: essas idéias, e milhares de outras, são erros de velhos charlatães, que julgaram sem raciocinar e que, enganando-se, enganaram os outros.
Preconceitos históricos

A maioria das histórias foram cridas sem exame, e essa crença é um preconceito. Fábio Pictor relata que, muitos séculos antes dele, uma vestal da cidade de Alba, indo buscar água com o seu cântaro, foi violada e deu à luz a Rômulo e Remo, que eles foram nutridos por uma loba, etc. O povo romano acreditou nessa fábula; não perdeu tempo em examinar se naqueles tempos existiam vestais no Lácio, se era possível que a filha de um rei saísse de seu convento com seu cântaro, se era provável que uma loba amamentasse dois meninos em vez de os comer como fazem todos os lobos. Estabelece-se então o preconceito.
Um monge escreveu que Clovis, estando num grande perigo na batalha de Tolbiac, fez voto de se tornar cristão se conseguisse escapar; é porém natural que uma pessoa se dirija a um deus estrangeiro em tal ocasião? Não é precisamente num momento desses que a religião na qual se nasceu age mais fortemente? Qual é o cristão que, numa batalha contra os turcos, não se dirigirá antes à Santa Virgem que a Mafoma? Acrescenta-se que um pássaro levou a santa ampola em seu bico a fim de ungir Clovis e que um anjo trouxe a auriflâmula para o conduzir. O preconceito crê em todas as historietas desse gênero. Os que conhecem a natureza humana sabem que o usurpador Clovis e o usurpador Rolão ou Rol se tornaram cristãos para governar mais seguramente a cristãos, como os usurpadores turcos se tornaram muçulmanos para governar mais seguramente os muçulmanos.
Preconceitos religiosos

Se vossa sina vos contou que Ceres preside ao trigo ou que Vichnú e Xaca se transformaram em homens várias vezes, ou que Samonocodom veio destruir uma floresta, ou que Odin vos espera em sua sala lá na Jutlândia, ou que Mafoma ou outro qualquer fez uma viagem ao céu; enfim se vosso preceptor vem em seguida refundar em vosso cérebro o que vossa ama aí gravou, tendes com que vos divertir para o resto da vida. Vosso julgamento quer elevar-se contra tais preconceitos; vossos vizinhos, e sobretudo vossas vizinhas, berram contra a impiedade, e vos assustam; vosso dervís, temendo ver diminuídas as suas rendas, denuncia-vos ao cadi, e esse cadi vos manda empalar se o puder, porquanto o seu desejo é mandar sobre idiotas, e crê que os idiotas obedecem melhor do que os outros. E esse estado de coisas durará até que vossos vizinhos e o dervís e o cadi comecem a compreender que a cretinice não serve para coisa alguma e que a perseguição é abominável.

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