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Saturday, September 15, 2007

DICIONÁRIO FILOSÓFICO VOLTAIRE C- F

CERTO, CERTEZA

Que idade tem vosso amigo Cristóvão?
Vinte e oito anos. Vi sua certidão de casamento e de batismo, conheço-o desde criança. Tem vinte e oito anos, tenho certeza, estou certo.
Mal acabo de ouvir a resposta desse homem tão seguro do que diz e de vinte outros que o corroboram, venho a saber que, por motivos secretos e singular engenho, se antedatou a certidão de batismo de Cristóvão. Aqueles com quem falei nada sabem ainda. No entanto, sempre tiveram certeza do que não é.
Se perguntásseis a todos os homens antes de Copérnico:
— O sol levantou-se hoje? O sol se pôs?
— Temos absoluta certeza – responder-vos-iam à uma
Tinham certeza, e no entanto estavam errados.
Sortilégios, adivinhações, obsessões foram durante longo tempo as coisas mais certas do mundo aos olhos de todos os povos. Quanta gente presa dessas ilusões não estava certa do que presumia ver! Hoje acha-se menos em voga essa certeza.
Vem visitar-me um jovem estudante de geometria. Principiante, ainda se acha às voltas com a definição dos triângulos.
— Não é certo – pergunto-lhe – que os três ângulos de um triângulo são iguais a dois ângulos retos?
— Não só não tenho certeza – responde-me – como nem sequer compreendo claramente essa proposição.
Demonstro-lha. Certifica-se, e para o resto da vida.
Eis aí uma certeza muito diferente das anteriores. Aquelas não eram mais que probabilidades que, examinadas, revelaram-se erros. A certeza matemática, porém, é imutável e eterna.
Existo. Penso. Sinto. Será isso tão certo quanto uma verdade geométrica? Sim. Por que? Porque as verdades se provam pelo princípio de que nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Não Posso existir e simultaneamente não existir, sentir e não sentir. Um triângulo não pode ter cento e oitenta graus – a soma de dois ângulos retos – e ao mesmo tempo não os ter.
De mesmo valor são pois a certeza física de que existo, de que sinto e a certeza matemática, embora de gêneros diversos.
O mesmo não acontece com a certeza que se funda em aparências ou testemunhos unânimes dos homens.
— Ora essa! Então não estais certo de que Pequim existe? Não tendes em casa estofos de Pequim! Indivíduos dos mais diversos países e opiniões, que escreveram violentamente uns contra os outros pregando a verdade em Pequim, não vos asseveraram a existência dessa cidade?
— Acho muitíssimo provável ter existido tal cidade. Mas não apostaria a vida em como exista, se bem não hesite em apostá-la em como os três ângulos de um triângulo perfazem dois retos.
Estampou-se no Dictionnaire Encyclopédique uma coisa jovialíssima. Sustenta-se lá que, se mo dissesse toda Paris, eu deveria estar tão seguro, tão certo de que o marechal de Saxe ressuscitou, como o estou de que ele venceu a batalha de Fontenoy, quando toda Paris mo assevera. O raciocínio é admirável: Creio em Paris quando toda ela me diz coisa moralmente possível; portanto não devo cre-la quando me diz coisa moral e fisicamente impossível.
Parece que o autor queria rir, e que o outro autor que se extasia ao fim desse artigo escrito contra si próprio também o queria.
CÉU DOS ANTIGOS (O)

Se um bicho da seda desse o nome de céu ao frouxel que lhe envolve o casulo, não raciocinaria pior que os antigos chamando céu à atmosfera, que é, como muito bem diz o Sr. de Fontenelle em seus Mondes, o cotão do nosso casulo.
Os vapores que se exalam dos mares e do solo e formam as nuvens, os meteoros e os trovões, foram a princípio tomados pela morada dos deuses. Em Homero os deuses sempre descem em nuvens de ouro. Vem daí ainda hoje representarem-nos os pintores sentados em uma nuvem. Mas como era justo estivesse o senhor dos deuses mais a vontade que os outros, deram-lhe uma águia por veículo, por ser a ave que mais alto voa.
Vendo os senhores das cidades morarem em cidadelas eretas nas assomadas das montanhas, julgaram os antigos gregos que os deuses também. deviam ter uma cidadela, e colocaram-na na Tessália, no monte Olimpo, cujo vértice não raro se amortalha de nuvens De sorte que seu palácio se achava no mesmo nível do céu.
Estrelas e planetas, que parecem engastados na abóbada azul da atmosfera, foram transformados em outras tantas moradas de deuses. Sete dentre estes tiveram cada um seu planeta. Os outros alojaram-se onde melhor puderam. Em sala a que conduzia a via láctea reunia-se o conselho geral dos deuses: necessário era que tivessem seu congresso no ar, já que os homens tinham seus paços municipais na terra.
Quando os titãs, espécie de animais entre os deuses e os homens, declararam uma guerra justíssima aos deuses em vindicação de sua herança paterna – sendo como eram filhos do Céu e da Terra – não tiveram mais que empilhar duas ou três montanhas umas sobre outras para se tornarem senhores do céu e do castelo do Olimpo.

Neve foret terris securior arduus aether,
affectasse ferunt regnum coeleste gigantes,
altaque congestos struxisse ad sidera montes.

Essa física de crianças e de velhos era antiquíssima. Contudo é muito provável tivessem os caldeus idéias tão sãs quanto nós do que se chama o céu. Colocavam eles o Sol no centro do nosso mundo planetário, em distância da Terra aproximadamente a mesma reconhecida hoje. Em torno do Sol faziam girar a Terra e todos os planetas, ensina-nos Aristarco de Samos. É o verdadeiro sistema do universo, posteriormente reeditado por Copérnico. Os filósofos, porém, guardavam o segredo para si, a fim de serem mais respeitados pelos reis e pelo povo, ou antes, para não serem perseguidos.
É tão familiar aos homens a linguagem do erro que ainda chamamos céu aos vapores e ao espaço entre a Terra e a Lua. Dizemos subir ao céu, como dizemos que o Sol gira, conquanto saibamos que não é assim. Possivelmente, para habitantes da Lua, nós é que somos o céu. Cada planeta coloca o seu céu no planeta vizinho.
Se se perguntasse a Homero para que céu tinha ido a alma de Sarpédon, onde estava a de Hércules, pôr-se-ia o grande poeta em calças pardas. Certamente responderia com versos harmoniosos.
Como saber se a alma aérea de Hércules se acharia mais a vontade em Vênus ou Saturno que na Terra? Ou estaria no Sol? É de crer que não estivesse muito a vontade nessa fornalha. Finalmente, que entenderiam os antigos por o céu? Ignoravam o que fosse. Sempre disseram o céu e a terra. É como se dissessem o infinito e um átomo. Propriamente falando não existe céu. O que há é uma quantidade prodigiosa de globos girando no vazio do espaço, um dos quais é a Terra.
Criam os antigos que ir aos céus era subir. A verdade, porém, é que não se sobe de um astro a outro. Estão os corpos celestes tanto abaixo como acima do nosso horizonte. Assim, supondo que, tendo vindo a Pafos, Vênus regressasse a seu planeta quando este se houvesse posto, não subiria em relação ao nosso horizonte: pelo contrário, desceria, e nesse caso deveria dizer-se descer ao céu. Porém os antigos não alcançavam tais sutilezas. Tinham noções vagas, incertas, contraditórias sobre tudo que concernia à, física. Escreveram-se volumes de légua e meia a fim de saber o que pensavam acerca de um sem número de questões que tais. Bastariam duas palavras: não pensavam.
Sempre é bom excetuar alguns sábios Mas vieram mais tarde. Poucos manifestaram seus pensamentos, e foi o quanto bastou para que os charlatães os mandassem para o céu pelo caminho mais curto
Pretendeu um escritor, chamado, creio; Pluche, promover Moisés a grande físico. Já antes outro o conciliara com Descartes e dera à estampa o Cartesius Mosaizans. A dar-lhe ouvidos foi Moisés quem primeiro concebeu os turbilhões e a matéria sutil. É no entanto por de mais sabido que Deus, fazendo Moisés um grande legislador, um grande profeta, nem sequer lhe passou pela veneta fazê-lo professor de física. Moisés ensinou aos judeus qual era seu dever, mas não lhes disse palavra de filosofia. Calmet, que compilou às pazadas e sem nunca raciocinar, fala de sistema dos hebreus. Porém esse povo grosseiro nunca teve sistema algum. Nem sequer possuíam escola de geometria. O termo era grego para eles. Sua ciência era o ofício de corretor e a usura.
Deparam-se em seus livros algumas idéias obscuras, incoerentes, dignas em tudo por tudo de um povo bárbaro, sobre a estrutura do céu. Seu primeiro céu era o ar. O firmamento, sólido e de gelo, sustinha as águas superiores, que ao tempo do dilúvio vazaram desse reservatório por portas, esclusas e cataratas.
Acima do firmamento ou das águas superiores estava o terceiro céu ou empíreo, para onde foi arrebatado S. Paulo. Formava o firmamento uma espécie de meia abóbada continente da Terra. O Sol não girava em torno da Terra porque sequer concebiam que a terra fosse redonda. Chegando ao ocidente, voltava ao oriente por caminho desconhecido. E se não se via era em virtude de que, como disse o barão de Foeneste, desandava de noite.
Todas essas fantasias, adotaram-nas os hebreus dos outros povos. Considerava o céu a maioria das nações, tirante a escola dos caldeus, como um sólido. A Terra, fixa e imóvel, era mais longa um grande terço de oriente a ocidente que de meio dia a norte. Daí as expressões longitude e latitude, por nós perfilhadas. Claro que, desta forma, era impossível haver antípodas. Sto. Agostinho trata a idéia de antípodas de absurdo, e diz expressamente Lactâncio: “Haverá indivíduos tão estúpidos a ponto de crerem que possa haver homens de cabeça para baixo?”
Pergunta S. Crisóstomo em sua décima quarta homilia: “Onde estão os que pretendem que os céus sejam imóveis e de forma circular?”
Diz ainda Lactâncio no livro terceiro das Instituições: “Poderia demonstrar-vos com uma enfiada de argumentos que é impossível que o céu circunde a Terra”
Que diga quanto quiser o autor do Espetáculo da Natureza terem sido Lactâncio e S. Crisóstomo grandes filósofos. Responder-lhe-eis terem sido grandes santos e que para tanto não é indispensável ser bom astrônomo. Acreditá-los-eis no céu: mas força é confessardes que ignorais em que ponto precisamente.
CHINA (DA)

Vamos à China a procura de terra, como se nos faltasse. Tecidos, como se de tecidos carecêssemos. Certa erva para infundir n’água, como se nossos climas não produzissem símplices. Em paga timbramos em querer converter os chineses. Zelo plausibilíssimo. Mas nem por isso precisamos contestar sua antigüidade e lançar-lhes a tacha de idólatras. Que diríeis de um capuchinho que, depois de generosamente acolhido pelos Montmorency em um de seus castelos, quisesse persuadi-los de que são nobres feitos da noite para o dia, como os secretários do rei, e os acusasse de idólatras por encontrar no castelo duas ou três estátuas de condestáveis a quem os Montmorency votassem profundo respeito?
Proferiu certa vez o famoso Wolf, catedrático de matemáticas na universidade de Halle, um magnífico discurso em louvor da filosofia, chinesa. Elogiou a essa milenária. estirpe de homens – diferentes de nós pela barba, pelos olhos, pelo nariz, pelas orelhas e pelo raciocínio – o adorarem um Deus supremo e amarem a virtude Rendia essa justiça aos imperadores da China, aos colao, aos tribunais, às letras. A justiça que se rende aos bonzos é um pouco diferente.
Wolf atraía a Halle um milheiro de estudantes de todas as nações. Havia na mesma universidade um professor de teologia – atendia ao nome de Lange – que não atraía ninguém. Este homem, desesperado por gelar de frio sozinho no locutório, resolveu perder o professor de matemáticas. Macaqueando os de sua igualha, acusou-o de não crer em Deus.
Pretendiam alguns escritores europeus que nunca haviam estado na China que o governo de Pequim era ateu. Wolf elogiara Pequim. Logo, Wolf era ateu. Melhores silogismos nunca souberam forjar a inveja e o ódio. Corroborado por uma cabala e um protetor, achou o rei de Inglaterra conclusivo o argumento de Lange e propôs ao matemático um dilema formal: deixar Halle em vinte e quatro horas ou ser pendurado – Como tinha e quisesse conservar a cabeça no lugar, Wolf escolheu o primeiro alvitre. Sua retirada subtraiu ao rei duzentos ou trezentos mil escudos anuais, que era quanto fazia entrar no reino esse filósofo pela afluência de discípulos.
Serve este exemplo para mostrar aos soberanos que nem sempre é conveniente dar ouvidos à calúnia e sacrificar um grande homem à inveja de um imbecil.
Voltemos à China.
Como é que nos atrevemos, nós, cá do fim do Ocidente, a disputar encarniçadamente e com torrentes de injúrias por deslindar se houve ou não catorze príncipes na China antes do imperador Fo-hi, e se Fo-hi viveu a três mil ou dois mil e novecentos anos antes da era vulgar? Engraçadíssimo que dois irlandeses se pusessem a brigar em Dublin por saber quem foi, no século XII, o possessor das terras que hoje me pertencem. Não é evidente que deveriam deixá-lo a mim, que tenho os arquivos em mãos?
O mesmo, penso eu, é o caso dos primeiros imperadores da China: cumpre recorrer aos tribunais do país
Agatanhai-vos quanto vos aprouver por amor dos catorze primeiros príncipes que reinaram antes de Fo-hi. Não conseguirão provar vossos bate-bocas mais que já então era a China densamente povoada e vivia sob o império da lei. Agora pergunto-vos: não supõe prodigiosa antigüidade uma nação sedimentada, com leis e príncipes? Pensai em quanto tempo é necessário para que singular concurso de circunstâncias leve a descobrir o ferro nas minas, se empregue na agricultura e se inventem as artes.
Os que fazem filhos a penadas imaginaram um cálculo interessantíssimo. Por uma suputação do arco da velha, dá o jesuíta Pétau à terra, duzentos e oitenta e cinco anos após o dilúvio, população cem vezes maior do que não ousamos atribuir-lhe hoje. Menos cômicos não são os cálculos dos Cumberland e Whiston. Não tinham esses ingênuos senão que consultar os registros das nossas colônias na América para se desencantarem. Ficariam sabendo quão pouco se multiplica o gênero humano, e que não raro diminui em vez de aumentar.
Deixemos, pois, nós que somos de ontem, nós descendentes dos celtas, nós que mal acabamos de surribar as florestas de nosso selvagem habitáculo, deixemos os chineses e hindus desfrutarem em paz de seu maravilhoso clima e de sua antigüidade. Sobretudo demos de mão a essa história de xingar de idólatras o imperador da China e o subabe do Decã.
Não é preciso, todavia, ser fanático do mérito chinês É verdade ser a constituição desse império a melhor do mundo, a única fundada no poder paternal (o que não obsta que os mandarins não vivam a espancar os filhos), a única na qual é punido o governador de província que ao deixar o cargo não seja aclamado pelo povo. A única que instituiu prêmios à virtude, de passo que em todas as outras nações as leis se limitam a castigar o crime. A única que impôs suas leis aos próprios vencedores, enquanto nós ainda vivemos sujeitos aos costumes dos borgúndios, francos e godos que nos avassalaram. Deve-se reconhecer, todavia, ser o vulgacho governado por bonzos tão canalha quanto o nosso. Que, como nós, não perdem ocasião de escorchar o estrangeiro Que nas ciências nos caranguejam a reboque com dois séculos de atraso. Que como a nós gafa-os sem conto de preconceitos ridículos. Que acreditam, como por muito tempo cremos, em talismãs e na astrologia judiciária.
Confessemos ainda que ficaram queixicaídos ante o nosso termômetro, ante o costume de gelarmos licores com salitre e ante todas as experiências de Torricelli e Otto de Guericke, exatamente como o ficamos, quando presenciamos pela primeira vez a esses brincos da física. Que seus médicos não curam melhor que os nossos as doenças mortais e que, tal qual como aqui, na China as moléstias triviais são relegadas aos cuidados exclusivos da natureza. Nada disso impede, porém, que há quatro mil anos, quando sequer sabíamos ler, já estivessem os chins de posse de todas as coisas essencialmente úteis de que hoje fazemos alarde.
CIRCUNCISÃO

Ao narrar o que lhe disseram os bárbaros cujos países viajou, Heródoto, como a maioria dos nossos viajores, não nos diz mais que tolices. Não devemos dar-lhe crédito, igualmente, quando fala da aventura de Giges e Candolo, de Árion montado num delfim, do oráculo consultado para saber o que fazia Creso, o qual respondeu que ele estava cozendo uma tartaruga numa panela tampada, do cavalo de Dario que, tendo sido o primeiro em nitrir, proclamou seu dono rei, e de cem outras fábulas próprias para divertir crianças e ser compiladas por retóricos. Quando, porém, fala do que viu, dos costumes dos povos que estudou, das, antigüidades que submeteu a exame, aí sim dirige-se a gente grande.
“Quero crer” – diz no livro Euterpe – “que os habitantes da Cólchida sejam originários do Egito. Julgo-o mais por mim mesmo que de outiva, porque verifiquei ser mais viva a recordação dos antigos egípcios na Cólchida que no Egito a lembrança dos velhos costumes de Colchos.
“Pretendia esse povo praieiro do Ponto Euxino ser uma colônia fundada por Sesostris. Quanto a mim, já o conjeturava, não somente por serem adustos e terem os cabelos frisados, mas porque os povos da Cólchida, Egito e Etiópia são os únicos na terra que sempre praticaram a circuncisão. Quanto aos fenícios e aos habitantes da Palestina, confessam ter copiado tal prática aos egípcios. Da mesma forma os sírios, que hoje estanciam às abas do Termódon e da Parténia, e seus vizinhos mácrons reconhecem não haver muito tempo que se conformaram a esse costume egípcio. É esse até um dos principais atestados de sua ascendência. egipcíaca.
“Quanto à Etiópia e ao Egito, como a circuncisão é antiquíssima tanto num como noutro, não sei qual dos dois tenha importado essa cerimônia. O mais provável, contudo, é terem-na recebido os etíopes dos egípcios. Assim como, contrariamente, desterraram os fenícios o uso de circuncidar as crianças recém nascidas desde que se intensificou seu comércio com os gregos.”
É evidente, de acordo com esse passo de Heródoto, que muitos foram os povos que receberam a circuncisão do Egito. Nenhum, porém, jamais pretendeu tê-la importado dos judeus. A quem atribuir então a origem desta prática: a uma nação de que confessam havê-la perfilhado cinco ou seis outras, ou a uma nação muito menos poderosa, menos comerciante, menos guerreira, encafurnada num canto da Arábia Pétrea, que nunca comunicou a povo nenhum o mais insignificante de seus costumes?
Dizem os judeus ter sido outrora caritativamente acolhidos pelos egípcios. Não é muito verossímil haver o povo ínfimo imitado um uso do grande povo? Não é natural terem os judeus adotado um ou outro costume de seus senhores?
Conta Clemente de Alexandria que, viajando o Egito, Pitágoras foi obrigado a deixar circuncidar-se para ser admitido em seus mistérios. Quer dizer que era absolutamente imprescindível ser circunciso para ingressar no sacerdócio egípcio. Tal sacerdócio já existia quando José foi dar com os costados no país das pirâmides. Antiquíssimo era o governo, e as cerimônias se observavam com a mais escrupulosa exatidão.
Confessam os judeus ter permanecido duzentos e cinco anos no Egito. E dizem não haver praticado a circuncisão nesse espaço de tempo. Claro é por conseguinte que os egípcios não poderiam ter-lhes copiado essa prática enquanto os tiveram como hóspedes. Te-lo-iam feito posteriormente, depois de os judeus lhes haverem roubado todos os vasos que lhes tinham sido emprestados e se rasparem a sete pés para o deserto levando consigo o fruto do roubo, segundo seu próprio testemunho? Adotará um senhor o selo da religião de um escravo que o roubou e fincou pé no mundo? Não o admite a natureza humana.
Diz-se no livro de Josué que os judeus foram circuncidados nos desertos: “Eu vos livrei do que constituía o vosso opróbrio entre os egípcios”. Ora, qual podia ser esse opróbrio para uma nação encravada entre a Fenícia, Arábia e Egito, senão o que os tornava desprezíveis aos olhos destes três povos? Como livrá-los desse opróbrio? Livrando-os de um pouco de prepúcio. Não é o sentido natural do trecho a cima citado?
Diz o Gênesis que Abraão foi circunciso. Mas Abraão esteve no Egito, que era havia muito reino florescente, governado por poderoso rei. Nada impede que nesse reino tão antigo fosse a circuncisão praticada desde muito tempo antes que se formasse a nação judaica. Demais a circuncisão de Abraão foi um caso insulado. Só depois de Josué foi que se vulgou entre seus pósteros esse sacramento.
Ora, antes de Josué os israelitas aprenderam, como eles mesmos confessam, muitos costumes dos egípcios. Imitaram-nos em não poucos sacrifícios, cerimônias, como os jejuns às vésperas das festas de Isis, as abluções, o costume de rapar a cabeça dos padres, o incenso, o candelabro, o sacrifício da vaca ruça, a purificação com hissopo, a abstinência da carne de porco, a aversão aos utensílios de cozinha dos estrangeiros, tudo atestando que o diminuto povo hebreu, mau grado sua antipatia à grande nação egípcia, retivera infinidade de usos de seus ex-senhores. O bode Hazazel, que enviavam ao deserto carregado dos pecados do povo, era visível imitação de uma prática egípcia. Os próprios rabinos convêm em que a palavra Hazazel não é hebraica. Nada obsta portanto que os hebreu hajam imitado os egípcios na circuncisão, como o fizeram seus vizinhos árabes.
Nada de extraordinário há em que Deus, que santificou o batismo, tão antigo entre os asiáticos, santificasse também a circuncisão, não menos antiga entre os africanos. Já dissemos ser senhor de conferir suas graças aos sinais que se dignar eleger.
Demais de tudo, desde que, sob Josué, os judeus foram circuncisos, mantiveram essa prática até nossos dias. O mesmo fizeram os árabes. Os egípcios, porém, que a princípio circuncidavam os jovens de ambos os sexos, com o tempo deixaram de submeter as moças a tal operação, terminando por restringi-la aos sacerdotes, astrólogos e profetas. É o que nos ensinam Clemente de Alexandria e Orígenes. Efetivamente, nunca se ouviu dizer que os Tolemeus tivessem sido circuncidados.
Os autores latinos, que tratam os judeus com tão profundo desprezo que lhes chamam curtas Apella, por derisão, credat Judaeus Appella, curti Judaei, não dão epítetos tais aos egípcios. Hoje a circuncisão é de regra no Egito, mas por outra razão: porque o mafomismo adotou a antiga circuncisão da Arábia.
Foi essa circuncisão árabe que passou à Etiópia, onde ainda se circuncidam os jovens de ambos os sexos.
Não há negar ser à primeira vista bem estranha a cerimônia da circuncisão. Mas note-se que em todos os tempos os sacerdotes do Oriente se consagraram a suas divindades por marcas particulares. Entre os padres de Baco o sinal era uma folha de hera gravada a buril. Diz Luciano que os devotos da deusa Tais imprimiam sinais no pulso e pescoço. Os sacerdotes de Cibele faziam-se eunucos.
É muito provável que os egípcios, que veneravam o instrumento da geração e carregavam-lhe a imagem em suas procissões, tivessem a idéia de oferecer a Isis e Osiris, deuses que presidiam a todos os fenômenos de reprodução, uma partícula do membro por que quiseram essas divindades que o gênero humano se perpetuasse. São os antigos costumes orientais tão diferentes dos nossos que nada parecerá extraordinário a quem quer que tenha um pouco de leitura. Um parisiense fica admirado ao saber que os hotentotes cortam aos filhos um dos testículos. Os hotentotes ficariam admiradíssimos se soubessem que os parisienses conservam os dois.
CONVULSÕES

Dançou-se pelo ano de 1724 no cemitério de Saint-Médard. Deram-se no local um sem número de milagres, de que nos dá amostra uma canção da duquesa de Maine:

Um engraxate à real,
do pé esquerdo aleijado,
teve por graça especial
ser do direito privado

Como é sabido, as convulsões miraculosas continuaram até que foi posto um guarda no cemitério.

Em nome do rei veda-se entrar
doravante a Deus neste lugar.

Os jesuítas, como se sabe, já não podendo fazer de tais milagres desde que seu Xavier esgotara as graças da Companhia ressuscitando nove mortos contados a dedo, lembraram-se, para balançar o crédito dos jansenistas, de estampar uma imagem de Jesus Cristo vestido de jesuíta. Como ainda é sabido, escreveu um burlão do partido jansenista em baixo da estampa:

Que jesuítas manhosos!
De medo que vos amássemos,
estes monges engenhosos
vos vestiram à sua imagem.

Os jansenistas, a fim de melhor provar que jamais Cristo poderia tomar o hábito de jesuíta, puseram Paris de pernas para o ar e carrearam o mundo para sua banda. O conselheiro parlamentar Carré de Montgerou apresentou ao rei um relatório in-4 de todos esses milagres, atestados por milhares de testemunhas. Foi metido, como de direito, sob grades, onde se tratou de restabelecer-lhe o cérebro pelo regime. Mas a verdade sobrepaira a todas as perseguições: os milagres se perpetuaram durante trinta anos a fio, sem solução de continuidade. Chamava-se sóror Rosa, sóror Iluminada, sóror Prometida, sóror Confita: açoitavam-nas até o sangue, e no dia seguinte estavam como se nada houvesse acontecido. Vergastavam-lhe o estômago bem encouraçado, bem estofado, sem sequer sentirem. Punham-nas ao fogo, o rosto emplastado de pomadas, e nada de queimar. Enfim, como todas as artes se aperfeiçoam, terminou-se por fincar-lhes espadas nas carnes e por crucificá-las. Chegou-se até a crucificar um teólogo famoso(24), tudo para convencer o mundo do ridículo de certa bula, o que se poderia ter feito sem tanto custo. Nesse em meio jesuítas e jansenistas uniram-se contra o Espírito dos leis, e contra... e contra... e contra ...e contra... E temos o ousio, depois de tudo isso, de escarnicar dos lapões, dos samoiedas e dos negros!
CORPO

Assim como não sabemos o que seja espírito, ignoramos o que seja corpo. Percebemo-lhe apenas propriedades. Mas que é o ente em que residem tais propriedades? Tudo é corpo, dizia Demócrito e Epicuro. Não existem corpos, contravinham os discípulos de Zênon de Eléia.
Berkeley, bispo de Cloyne, foi o último que, por cem sofismas capciosos, pretendeu provar que os corpos não existem. Eles não têm, disse, nem cor, nem odor, nem calor. Tudo isso está em vossas sensações e não nos objetos. O Sr. Berkeley podia ter-se poupado ao trabalho de demonstrar semelhante verdade: conhecemo-la de sobejo. Mas daí passa à extensão, à solidez, que são essências do corpo, e julga provar não haver extensão num retalho de pano verde porque em verdade o pano não é verde. A sensação do verde acha-se tão somente em vós: por conseguinte a impressão de extensão não está também senão em vós. Após destruir a extensão, conclui que a solidez cai consequentemente por si mesma, e que portanto nada existe além das nossas idéias. De sorte que, segundo esse doutor, dez mil homens trucidados por dez mil balas de canhão não passam em suma de dez mil apreensões da nossa alma.
Só mesmo o sr. bispo de Cloyne seria capaz de cometer tamanho ridículo. Presume demonstrar que não existe extensão porque com lunetas um corpo lhe parece quatro vezes maior que a olho desarmado, e quatro vezes menor com auxílio de outro vidro. Daí concluir que, não podendo um corpo ter quatro, dezesseis e um só pé de extensão ao mesmo tempo, tal extensão não existe. Logo nada existe. Bastava-lhe medi-lo e dizer: não importa o tamanho que me pareça ter, este corpo tem tantos centímetros.
Muito fácil lhe seria ver que o caso da extensão e da solidez não é o mesmo dos sons, das cores, dos sabores e dos odores. Claro que estes são impressões subjetivas em nós excitadas pela configuração das partes. A extensão, porém, não é sensação. Se se consumir este lenho, deixarei de sentir calor. Não sendo ferido o ar, não ouvirei. Estiole-se esta rosa e já não lhe sentirei o perfume. Independentemente de mim, entretanto, este lenho, este ar, esta rosa têm extensão.
Nem merece refutação o paradoxo de Berkeley.
Cai a talho saber o que o levara a semelhante paradoxo. Há muito tempo tive com ele algumas palestras. Disse-me que a origem de sua opinião era o não se poder conceber o que seja o sujeito da extensão. Efetivamente ele triunfa em seu livro quando pergunta a Hilas o que é esse sujeito, esse substrato, essa substância. “É o corpo estendido” – responde Hilas. Então o bispo, sob o nome de Filonous, põe-se a escarnecê-lo. E o pobre Filonous, percebendo ter dito que a extensão é sujeito da extensão, e que cometeu uma rata, fica atalhado e confessa nada compreender, que não existe corpo nem tão pouco mundo material, que só existe o mundo intelectual. Bastava Hilas dizer a Filonous: Nós nada sabemos sobre a essência desse sujeito, dessa substância estendida, sólida, divisível, móvel, figurada, etc. Não a conheço mais que o sujeito que pensa, que sente e que quer. Mas sua existência é tão inegável como a deste, pois tem propriedades essenciais de que não há despojá-lo.
Somos como a maior parte das damas de Paris, que se regalam em régios banquetes sem saber o que entra nos acepipes. Semelhantemente, desfrutamos dos.. corpos sem saber de que se compõem. De que é feito o corpo? De partes, que por sua vez se resolvem em outras partes. Que são as últimas partículas? Sempre corpos. Dividireis eternamente e jamais passareis disso.
Afinal um sutil filósofo, notando que um painel se compõe de ingredientes de natureza diversa, e uma casa de materiais dos quais nenhum é casa, imaginou (de maneira um pouco outra) serem os corpos constituídos de infinidade de seres infinitamente pequenos que não são corpos – as mônadas. Tal sistema não deixa de possuir certa exeqüibilidade, e se fosse revelado eu o creria até muito possível. Todos esses entes ínfimos seriam pontos matemáticos, espécies de almas que não esperariam mais que uma capa para se vestirem: seria uma metempsicose contínua. Uma mônada estaria ora numa baleia, ora numa árvore, ora no corpo de um pelotiqueiro. É um sistema e tanto. Tenho-o no mesmo conceito que a declinação dos átomos, as formas substanciais, a graça versátil e os vampiros de dom Calmet.
CRISTIANISMO

Pesquisas históricas. – Não poucos eruditos manifestaram sua surpresa em não se lhes deparar no historiador José o menor traço a respeito de Jesus Cristo. Porque todos são acordes hoje em que o breve trecho que lhe dedica o historiador fariseu em sua História foi interpolado. No entanto o pai de José devia ter sido testemunha de todos os milagres de Jesus. José era da casta sacerdotal, parente da rainha Mariana, esposa de Herodes. Esparrama-se nas mais ociosas minudências sobre os mais corriqueiros atos desse príncipe, e contudo não diz palavra sobre a vida ou morte de Jesus. Demais esse historiador, que não encapa nenhuma das crueldades de Herodes, cala o morticínio de todas as crianças por ele ordenado atento à nova de que nascera um rei judeu. Conta o calendário grego catorze mil crianças degoladas nessa ocasião. É o mais abominável dos crimes de todos os soberanos. Não tem símile na história da civilização. A acontecimento tão singular quanto execrável, entretanto, não faz a mais leve referência o melhor escritor que em todos os tempos possuíram os judeus, o único prezado por gregos e romanos. Tão pouco regista ele o aparecimento da nova estrela que teria acendido no céu após o nascimento do Redentor, fenômeno ruidoso que não devia escapar a um historiador esclarecido como José. Mantém silêncio ainda sobre as trevas que, à morte do Salvador, com o sol a pino cobriram toda a terra por espaço de três horas, e sobre a grande quantidade de túmulos que então se abriram e a multidão dos justos ressurretos.
Não cessam os eruditos de manifestar sua surpresa de ver que nenhum historiador romano regista semelhantes prodígios, consumados sob o reinado de Tibério, aos olhos de uma guarnição e de um governador romano, que devia ter enviado ao imperador e ao senado relatório circunstanciado do mais miraculoso evento que ouvidos humanos ouviram contar. A própria Roma devia ter-se imerso durante três horas em espessas trevas. Deviam assinalar tamanho prodígio os fastos de Roma e de todas as nações. Deus não quis fossem tais coisas divinas escritas por mãos profanas.
Outras dificuldades empacham os eruditos na história dos Evangelhos. Observam eles que em S. Mateus Jesus diz aos escribas e aos fariseus que sobre eles recairia todo o sangue inocente derramado na terra, desde Abel até Zacarias, filho de Baraque, por eles assassinado no templo. Ora, a história dos hebreus não menciona, afirmam os eruditos, nenhum Zacarias morto no templo, nem antes nem depois do advento do Messias. O único historiador a registar o fato é José, livro 4, capítulo 19, ao falar do sítio de Jerusalém. Daí suspeitaram eles ter o Evangelho segundo S. Mateus sido escrito depois da tomada de Jerusalém por Tito. Mas todas as dúvidas e objeções dessa espécie se dirimem desde que se considere a infinita diversão que forçosamente há de haver entre os livros divinamente inspirados e os livros dos homens. Aprouve a Deus envolver numa nuvem tão respeitável quanto obscura o seu nascimento, sua vida e sua morte. Em tudo diferem seus métodos dos nossos.
Outro ponto que tem quebrado a cabeça aos literatos é a diferença das duas genealogias de Cristo. S. Mateus dá por pai a José, Jacó, a Jacó, Matã, a Matã, Eleazar. S. Lucas, ao contrário, diz que José era filho de Heli, Heli de Matate, Matate de Leví, Leví de Jana, etc.
Engasga-os ainda a suposição de Jesus não ser filho de José, mas de Maria. Atalham-nos também certas dúvidas quanto aos milagres do nosso Redentor, atentos os escritos de Sto. Agostinho, Sto. Hilário e outros, que atribuíram ao relato de tais milagres sentido místico, alegórico. Exemplos: a figueira amaldiçoada e secada para não dar frutos, quando não era tempo de figo. Os demônios enviados no corpo de porcos, num país onde não havia porcos. A água transformada em vinho ao fim de um repasto, quando os comensais já se achavam excitados. Todas essas críticas dos doutos, porém, confunde-as a fé, que com isso não faz senão aviventar-se. Outro não é o escopo deste artigo senão rastear o fio histórico e dar uma idéia tanto quanto possível exata dos fatos sobre que ninguém discute.
Primeiramente, Jesus nasceu sob a lei mosaica, segundo esta lei foi circuncidado, dela cumpriu todos os preceitos e celebrou todas as festas. Só pregou moral. Não revelou o mistério da própria encarnação nem disse aos judeus haver nascido de uma virgem. Recebeu a bênção de João nas águas do rio Jordão, cerimônia a que muitos judeus se submetiam, conquanto ele próprio jamais tenha batizado ninguém. Não falou dos sete sacramentos – Humanamente não se colocou em nenhuma hierarquia eclesiástica. Ocultou a seus contemporâneos ser filho de Deus, eternamente gerado, consubstancial a Deus, e que o Espírito Santo procedia do Pai e do Filho. Não disse que sua pessoa se compunha de duas naturezas e de duas vontades. Quis que esses grandes mistérios fossem revelados aos homens no decorrer dos tempos por aqueles que haviam de ser esclarecidos pelas luzes do Espírito Santo. Vivo, em nada se arredou da lei de seus pais. Não mostrou aos homens mais que um justo grato a Deus, perseguido pelos invejosos e condenado à morte por magistrados prevenidos. Quis que sua Santa Igreja, por ele fundada, fizesse o resto.
Fala José no capítulo 12 de sua História de uma seita de judeus rigoristas, recentemente fundada por um tal Judas galileu – “Eles desprezam” – diz – “os males terrenos, triunfando dos tormentos pela constância. Preferem, pela glória, a morte à vida. Optaram sofrer ferro e fogo, deixar que lhes quebrassem os ossos a pronunciar a menor palavra contra seu legislador ou comer carnes vedadas”.
O retrato parece quadrar aos judaístas e não aos essênios. Palavras de José: “Judas foi autor de uma nova seita, de todo ponto diversa das três outras – de saduceus, fariseus e essênios”. A breve trecho: “São judeus de nacionalidade. Vivem unidos entre si, e consideram vício a volúpia”. Denota o sentido natural da frase ser dos judaístas que fala o autor.
Seja como for, conheceram-se esses judaístas antes que os discípulos de Cristo constituíssem partido considerável no mundo.
Os terapeutas eram uma sociedade diferente de essênios e judaístas. Tiravam aos ginossofistas da Índia e aos bramas. “Anima-os” – atesta Fílon – “um ímpeto de amor celeste que os transporta ao entusiasmo dos bacantes e coribantes e guinda-os ao estado de contemplação a que aspiram. Esta seita nasceu em Alexandria, então inçada de judeus, e alastrou ferazmente pelo Egito”.
Os discípulos de João Batista também proliferaram um pouco no Egito, mas principalmente na Síria e Arábia. Medraram outrossim na Ásia Menor. Dizem os Atos dos Apóstolos (capítulo 19) haver Paulo encontrado muitos deles em Éfeso, aos quais indagou:
“— Recebestes o Espírito Santo
— Nem sequer ouvimos falar que houvesse um Espírito Santo.
— Que batismo recebestes
— O batismo de João.”
Existiam, nos primeiros anos que se seguiram à morte de Cristo, sete sociedades ou seitas distintas entre os judeus: fariseus, saduceus, essênios, judaístas, terapeutas, discípulos de João e discípulos de Cristo, cujo diminuto rebanho Deus conduzia a sendas desconhecidas da sabedoria humana.
Foram os fiéis apelidados cristãos em Antióquia, por beira do ano 60 da era vulgar. No império romano, como adiante veremos, foram conhecidos por outros nomes De primeiro não se distinguiam senão pela denominação de irmãos, santos ou fiéis. Deus, que baixara à terra a fim de ser exemplo de humildade e pobreza, dera assim toscos alicerces à sua igreja e guiara-a no mesmo estado de humilhação em que lhe aprouvera nascer. Foram os primeiros cristãos homens obscuros, trabalhadores manuais. Diz o apóstolo Paulo que ganhava a vida construindo tendas. S. Pedro ressuscitou a costureira Dorcas, que fazia os hábitos dos irmãos. Os fiéis reuniam-se em Jope, em casa de um curtidor de nome Simão, reza o capítulo 9 dos Atos dos Apóstolos.
Secretamente os fiéis se infiltraram na Grécia, e de lá alguns conseguiram transladar-se a Roma de contrabando com os judeus, a quem os romanos permitiam o funcionamento de uma sinagoga. Não se lhes separaram logo. Observavam a circuncisão e, como alhures já se advertiu, os quinze primeiros bispos de Jerusalém foram todos circuncidados.
Ao tomar consigo Timóteo, que era filho de pai gentio, o apóstolo Paulo circuncidou-o com as próprias mãos no lugarejo de Listra. Tito, porém, outro discípulo seu, não se deixou circuncidar. Mantiveram-se os irmãos discípulos de Cristo em união com os judeus até que Paulo foi perseguido em Jerusalém por levar estrangeiros ao templo. Acusavam-no os judeus de querer substituir a lei mosaica por Jesus Cristo. Foi para expungir-se dessa acusação que o apóstolo Jaques propôs ao apóstolo Paulo fazer-se rapar a cabeça e purificar-se no templo com quatro judeus. que haviam feito voto de se barbearem. “Tomai-os convosco” – disse-lhe Jaques (capítulo 21, Atos dos Apóstolos). – “Purificai-vos com eles, e que todos saibam ser falso o que de vós se diz e que continuais a observar a lei de Moisés”.
Paulo foi criminado também de impiedade e heresia, e seu processo durou longo tempo. Evidencia-se porém das próprias acusações contra ele assacadas que ele viera a Jerusalém para observar os ritos judaicos.
São palavras textuais de Paulo a Festo (capítulo 25 dos Atos): “Não pequei nem contra a lei judaica nem contra o templo”.
Os apóstolos anunciavam Cristo como judeu, observador da lei judaica, enviado de Deus para fazê-la observar.
“A circuncisão é útil” – diz o apóstolo Paulo (capítulo 2, Epístolas aos Romanos) – “se observais a lei. Mas se a violais vossa circuncisão torna-se em prepúcio. Se o incircunciso observa a lei, é como se fosse circunciso. Verdadeiro judeu é o que o é interiormente”.
Ao falar de Jesus em suas Epístolas, não revela esse apóstolo o mistério inefável da consubstancialidade do Crucificado com Deus. “Por ele fomos salvos” – diz (capítulo 5, Epístolas aos Romanos) “da cólera de Deus – Pela graça concedida a um só homem – Jesus Cristo – derramou-se sobre nós o dom divino. Pelo pecado de um só homem, reinou a morte. Por um só homem – Jesus – os justos reinarão.” E no capítulo 8: “Nós, os herdeiros de Deus e os co-herdeiros de Cristo.” No capítulo 16: “A Deus, que é o sábio único, honra e glória por Jesus Cristo. -. – Vós estais em Jesus, e Jesus está em Deus” (1a. Aos Coríntios, cap. 3). E (ibd., cap. 15, v. 27): “A ele tudo está sujeito, que a ele Deus tudo sujeitou”.
Teve-se certa dificuldade em explicar este lanço da Epístola aos Filipinos: “Nada façais por glória vã. Crede mutuamente pela humildade que os outros vos são superiores. Abrigai os mesmos sentimentos que Jesus, que, achando-se em missão de Deus, nem por isso cogitou usurpá-lo a ele se igualando”. Penetra-o e esclarece-lhe o verdadeiro sentido uma carta que nos legaram as igrejas de Viena e Lião, escrita no ano 117, precioso monumento da antigüidade. Louva-se nela a modéstia de alguns fiéis: “Eles não quiseram” – reza – “aureolar-se do título de mártires (por algumas tribulações) a exemplo de Jesus, que, em representação divina, não cogitou usurpar a qualidade de par de Deus”. Assim também diz Orígenes em seu Comentário sobre João: “Mais irradiante foi a grandeza de Jesus humilhando-se do que se tivesse usurpado a paridade com Deus”. Efetivamente, seria visível contra senso a interpretação contrária. Que significaria: “Crede os outros superiores a vós. Imitai Jesus, que não cogitou ser usurpação igualar-se a Deus”? Seria contradizer-se grosseiramente, seria dar um exemplo de grandeza por um exemplo de modéstia. Seria pecar contra o senso comum.
Assim fundava a sabedoria dos apóstolos a igreja nascente. Sabedoria que a disputa sobrevinda entre os apóstolos Pedro, Jaques e João de um lado e Paulo de outro não conseguiu turbar. Essa disputa sobreveio em Antióquia. O apóstolo Pedro, também chamado Cefas, ou ainda Simão Barjone, comia com os gentios conversos e com eles não observava as cerimônias da lei nem a distinção das carnes. Comiam, ele, Barnabé e outros discípulos, indiferentemente carne de porco, carnes afogadas de animais que tinham o pé fendido e que não ruminavam. Havendo chegado, entretanto, numerosos judeus cristãos, com eles S. Pedro retornou à abstinência das carnes proibidas e às cerimônias da lei mosaica.
A medida era prudente. Ele não queria escandalizar os judeus cristãos seus companheiros. Porém Paulo levantou-se contra ele com um pouco de dureza. “Eu lhe resistia” – disse-lhe no rosto – “porque era condenável”. (Epístola aos Gálatas, cap. 2).
Essa querela parece tanto mais extraordinária da parte de S. Paulo quanto a princípio ele fora perseguidor, o que o devia tornar mais modesto, fizera sacrifícios no templo de Jerusalém, circuncidara seu discípulo Timóteo e cumprira os ritos judeus que agora censurava em Cefas. Pretende S. Jerônimo que essa disputa entre Paulo e Cefas era de encomenda. Diz em sua primeira Homilia, tomo 2, que eles fizeram como dois advogados que, para ter mais autoridade sobre os clientes, se escandecem e se aferrotoam no tribunal. E sugere que, pretendendo Pedro Cefas pregar aos judeus e Paulo aos gentios; simularam querelar, Paulo para carear os gentios, Pedro para conquistar os judeus. Sto. Agostinho, porém, não está pelos autos: “Amofina-me” – escreve na Epístola a Jerônimo – “que um tão grande homem se torne patrono do embuste, patronum mendacii”.
De mais a mais, se Pedro ia pregar aos judeus judaizantes e Paulo aos estrangeiros, é muito provável que Pedro não haja vindo a Roma. Nenhuma menção fazem dessa viagem os Atos dos Apóstolos.
Seja como for, foi por volta do ano 60 da nossa era que os cristãos começaram a desquitar-se da comunhão judaica, o que tantas encrencas e perseguições lhes custou de parte das sinagogas de Roma, Grécia, Egito e Ásia. Acusaram-nos seus irmãos judeus de irreligiosidade, ateísmo e excomungavam-nos três vezes nos dias de sabate. Mas Deus protegeu-os em meio ao alude das perseguições.
Pouco a pouco proliferaram igrejas, e antes do fim do primeiro século ultimou-se o divórcio entre judeus e cristãos. O governo romano ignorava essa separação. Nem o senado nem os imperadores tinham olhos para as brigas de um partido insignificante que até então Deus conduzira na obscuridade e só insensivelmente trazia à luz diurna.
Balancemos o estado em que a esse tempo se achava a religião do império romano. Em quase toda a terra gozavam de crédito os mistérios e as expiações. Imperadores, grandes e filósofos, é verdade, não tinham a menor fé em tais mistérios. Mas o povo, que em matéria de religião dita a lei aos grandes, impunha-lhes a necessidade de se conformarem aparentemente com seu culto. Cumpre, para encadeá-lo, arrastar as mesmas cadeias que ele. O próprio Cícero iniciou-se nos mistérios de Eleusina. A concepção monoteica era o principal dogma que se anunciava nessas festas misteriosas e magníficas. Não há negar serem as orações e os hinos que desses mistérios nos restam o que de mais piedoso e admirável possui o paganismo.
O serem os cristãos também monoteístas muito lhes facilitou a conversão dos gentios. Alguns filósofos da seita de Platão bandearam para o cristianismo. Aí está por que foram platônicos todos os padres da igreja dos três primeiros séculos.
O zelo inconsiderado de alguns não conseguiu opor empeços às verdades fundamentais. Reprovou-se a S. Justino, um dos primeiros padres, o haver dito em seu Comentário sobre Isaías que, em reinado de mil anos sobre a terra, os santos gozariam de todos os bens sensuais. Reputou-se-lhe crime o dizer na Apologia do Cristianismo que, tendo Deus criado a terra, deixou-a aos cuidados dos anjos, que, enamorando-se das mulheres, lhes fizeram filhos, que são os demônios.
Condenou-se a Lactâncio e outros padres o terem dado crédito aos oráculos das sibilas. Pretendia ele haver a sibila Eritréia composto estes quatro versos gregos, que traduzo à cortiça da letra: – Com cinco pães e dois peixes – ele alimentará cinco mil homens no deserto. – E, juntando os sobejos, – doze cestos encherá.
Acoimou-se outrossim aos primeiros cristãos a falsa alegação de certos versos acrósticos de uma antiga sibila, os quais começavam todos pelas letras iniciais do nome de Jesus Cristo dispostas na mesma ordem.
Esses escrúpulos anticientíficos de alguns cristãos não impediram a igreja de realizar os progressos que lhe reservava Deus. Primitivamente os cristãos celebravam seus mistérios em casas retiradas, em subterrâneos, de noite. Daí, atesta Minútio Félix, lhes veio o apelido de lucifugaces. Fílon chamava-os gesseanos. Nos quatro primeiros séculos foram mais comumente conhecidos por galileus e nazarenos. Sobre todas essas denominações, todavia, prevaleceu a de cristãos.
Nem a hierarquia nem as práticas foram estabelecidas de uma vez. Os tempos apostólicos foram diferentes dos que se lhes seguiram. Ensina-nos S. Paulo (1a. Aos Coríntios) que estando os irmãos retinidos – circuncisos ou não – só podiam falar dois ou três profetas, e se entrementes alguém tivesse uma revelação, o profeta que tomara a palavra era obrigado a calar-se.
Sobre esse uso da igreja primitiva ainda hoje se fundam muitas comunhões cristãs, em cujas reuniões não há hierarquia. Inicialmente qualquer pessoa tinha o direito de falar na igreja, tirante as mulheres. A santa missa de hoje, que se celebra de manhã, primitivamente celebrava-se à tarde e era a ceia. Esses costumes mudaram à proporção que a igreja se fortaleceu. Sociedade mais extensa exigia evidentemente maior número de regulamentos, e a prudência dos pastores soube conformar-se às diferenças de tempo e lugar.
Abonam S. Jerônimo e Eusébio que, constituídas as igrejas, paulatinamente foram se distinguindo cinco ordens eclesiásticas: os vigilantes. – episcopoi – de onde provêem os bispos; os antigos da sociedade – presbyteroi – padres; os serventes ou diáconos – diaconoi; pistoi – crentes, iniciados, isto é, os batizados, que participavam das ceias dos ágapes; finalmente os catecúmenos e energúmenos, candidatos ao batismo. O hábito era o mesmo para as cinco ordens. Todas deviam manter o celibato, testemunham o livro de Tertuliano dedicado a sua mulher e o exemplo dos apóstolos. Nos três primeiros séculos nenhuma representação, pintada ou esculpida, presidia a suas reuniões. Os cristãos escondiam cuidadosamente seus livros aos gentios, não os confiando senão aos iniciados. Nem aos catecúmenos era permitido recitar a oração dominical.
O que mais caracteristicamente distinguia os cristãos, e que veio até nossos dias, era o poder de espantar os diabos com o sinal da cruz. Conta Orígenes no Tratado contra Celso, número 133, que Antinous, divinizado pelo imperador Adriano, fazia milagres no Egito por força de encantamentos e prestígios. Acrescenta, entretanto, bastar a simples pronunciação do nome de Jesus para os diabos deixarem o corpo dos possessos. Tertuliano vai mais longe e dos fundos da África proclama: “Se vossos deuses não confessarem ser diabos na presença de um vero cristão, de bom grado vos veria derramar o sangue desse cristão”. (Apologética, capítulo 23). Haverá coisa mais evidente?
Efetivamente, Jesus Cristo enviou seus apóstolos a fim de correr os demônios. Dom de expulsá-los tiveram também os judeus, porque, quando Jesus livrou possessos e espaventou os diabos no corpo de uma vara de porcos e operou outras curas que tais, disseram os fariseus: expulsa os demônios pelo poder de Belzebu. – Se é por Belzebu que eu os expulso – retrucou Jesus – por quem os expulsam vossos filhos!” É incontestável que os judeus se gabavam desse poder. Tinham exorcistas e exorcismos. Invocavam o nome do deus de Jacó e de Abraão. Introduziam ervas consagradas no nariz dos demoníacos. (José relata parte dessas cerimônias). Esse poder sobre os diabos, que os judeus perderam, transmitiu-se aos cristãos, que também parecem tê-lo perdido desde algum tempo.
Compreendia o poder de expulsar os demônios também o de desfazer as operações da magia. Porque a magia esteve em voga em todos os tempos e em todas as nações. Todos os padres da igreja a ela se referem. Observa S. Justino (Apologética, livro 3) ser muito comum invocar-se a alma dos mortos, tirando daí um argumento em favor da imortalidade da alma. Lactâncio (Instituições Divinas, livro 7) diz que “Se ousásseis negar a subsistência da alma ao corpo, o mago vos convenceria do contrário fazendo-a aparecer”. Ireneu, Clemente Alexandrino, Tertuliano, o bispo Cipriano, todos afirmam a mesma coisa – Verdade é que hoje tudo mudou e que já não existem magos nem endemoninhados. Mas certamente voltarão à cena quando for da vontade de Deus.
Quando as sociedades cristãs se tornaram mais ou menos numerosas e muitas se levantaram contra o culto do império romano, contra elas agiram rigorosamente os magistrados e sobretudo as perseguiu o povo. Não se perseguia aos judeus, que gozavam de privilégios particulares e se encaramujavam em suas sinagogas. Permitia-se-lhes o exercício de sua religião, como ainda o permite a Roma de hoje. Todos os cultos do império eram tolerados, embora não os adotasse o senado.
Tendo porém os cristãos se declarado inimigos de todos esses cultos, e sobretudo da religião do império, expuseram-se muitas vezes a cruéis provações.
Um dos primeiros e mais célebres mártires foi Inácio, bispo de Antióquia, condenado pelo próprio imperador Trajano, então na Ásia, e por ordens suas transportado a Roma a fim de ser exposto às feras. Isso num tempo em que ainda não era costume trucidar cristãos em Roma. Ignora-se de que tenha sido acusado junto desse imperador, afamado pela demência. Necessário era que Inácio tivesse inimigos figadais. De qualquer forma, conta a história de seu martírio haver-se encontrado em seu coração, gravado em letras de ouro, o nome de Jesus Cristo. Daí apelidarem-se os cristãos em alguns lugares teóforos, como a si próprio se chamava Inácio.
Conserva-se uma carta sua em que pede aos bispos e aos cristãos não se oporem a seu martírio, fosse porque já então eram os fiéis em número suficiente para impedi-lo, fosse porque os houvesse bastante acreditados para obter-lhe a graça. Notável é ter-se consentido que, ao ser trazido a Roma, os cristãos desta cidade fossem recebê-lo. O que prova que se punia nele a pessoa e não a seita.
Não foram continuadas as perseguições. Escreve Orígenes (Tratado contra Celso, livro 3): “Poucos foram os cristãos que morreram por sua religião. Só muito raramente se verificavam execuções dessa natureza”.
Tantos carinhos dispensou Deus a sua igreja que, a despeito de seus desafetos, fez que tivesse cinco concílios (congressos tolerados) no primeiro século, dezesseis no segundo e trinta no terceiro. Por vezes tais congressos foram proibidos, quando a falsa prudência dos magistrados temia que degenerassem em tumultos. Poucos são os processos verbais que nos restam de procônsules e pretores que condenaram cristãos à morte. Só à vista desses documentos poderíamos julgar das acusações contra eles assacadas e de seus suplícios.
Temos um fragmento de Dinís de Alexandria, no qual se relata o extrato da chancelaria de um procônsul do Egito sob o imperador Valeriano. Ei-lo:
Introduzidos na sala de audiência Dinís, Fausto, Máximo, Marcelo e Queremão, disse-lhes o prefeito Emiliano: “Tomastes conhecimento, pelas palestras que convosco tive e por tudo que a respeito tenho escrito, quão bondosos têm sido nossos príncipes em relação a vós. Repito-o: a vós mesmos entregaram vossa conservação e vossa saúde. Vosso destino está em vossas mãos. Uma única coisa vos pedem, coisa que a razão exige a toda pessoa razoável: que adoreis os deuses protetores de seu império e renegueis a esse culto contrário à natureza e ao bom senso”.
Respondeu Dinís: “Nem todos os homens têm os mesmos deuses. Cada um adora os que julga verdadeiramente serem-no.”
Replicou o prefeito Emiliano: “Vejo que sois ingratos e que abusais da bondade dos imperadores. Pois bem: não continuareis nesta cidade. Mandá-los-ei para Cefro, nos confins da Líbia, conforme ordem que recebí dos nossos imperadores. Não penseis reeditar lá vossas reuniões nem orar nesses lugares a que chamais cemitérios: tal vos é terminantemente vedado, e não o permitirei a ninguém”.
Nada mais possivelmente verdadeiro que esse processo verbal. Evidencia-se que houve tempo em que eram proibidas as reuniões dos cristãos, assim como entre nós se interdiz aos calvinistas congregarem-se em Languedoc. Chegamos até, uma vez ou outra, a fazer enforcar e rodar ministros e pregadores que promoveram congressos a despeito da lei. Na Inglaterra e Irlanda, igualmente, proíbem-se as reuniões de católicos romanos, e ocasiões houve em que os delinqüentes foram condenados à morte.
Mau grado essas interdições das leis romanas, Deus inspirou a muitos imperadores a indulgência para com os cristãos. O próprio Diocleciano, que os ignorantes têm como perseguidor, Diocleciano, cujo primeiro ano de reinado ainda se enevoa na idade dos mártires, foi durante muitos anos protetor declarado do cristianismo, a ponto de numerosos cristãos deterem dos principais cargos ao pé de sua pessoa. Chegou a tolerar que em Nicomedia, sua residência, se elevasse uma igreja defronte a seu palácio.
Infelizmente prevenido contra os cristãos, de quem temia viesse algum dia a se lamentar, o césar Galério fez Diocleciano destruir a catedral de Nicomédia. Um cristão mais piedoso que reportado fez em pedaços o édito do imperador, acendendo a famosa perseguição que condenou à morte mais de duzentas pessoas em toda a extensão do império romano, sem contar as que, contra as formas jurídicas, sacrificou a fúria do populacho, sempre fanático e sempre bárbaro.
Tão copioso é o rol dos mártires que seria conveniente cuidar de não baralhar a história dos verdadeiros confessores da nossa santa religião com o perigoso emaranhado de fábulas e falsos mártires.
O beneditino dom Ruinart, por exemplo, homem aliás de tanta instrução quanto respeitável e zeloso, devia ter escalrachado com mais discrição seus Atos Sinceros. Não é só escabichar um manuscrito em meio à papelada do abade de Saint-Benoît-sur-Loire ou de um convento de celestinos de Paris, conforme a um manuscrito dos fuldenses, e decretá-lo autêntico. É necessário que seja antigo, escrito por contemporâneos e, sobretudo, que estampe o selo da verdade.
Exemplo: o caso do jovem Romano, que a história situa no ano 303. Romano obtivera, em Antióquia, o perdão de Diocleciano. Sentencia o sr. Ruinart, no entanto, ter sido ele condenado ao fogo pelo juiz Asclepíades. Judeus presentes ao espetáculo haveriam mofado do jovem S. Romano, acoimando aos cristãos o abandoná-los seu Deus à tortura do fogo, ele que salvara ao forno Sidraque, Misaque e Abdenago. Presto se levantaria, no mais sereno do tempo, uma tempestade que apagaria o fogo. Então o juiz teria ordenado que se cortasse a língua ao jovem Romano. Encontrando-se ali o primeiro médico do imperador, oficiosamente desempenharia a função de algoz, cortando-lhe cerce a língua. De improviso o jovem, que era tartamudo, começaria a parolar muito a prazer. Assombrando-se o imperador de que se falasse tão bem sem língua, o médico, para reiterar a experiência, cortaria a língua ao primeiro passante que visse, o qual morreria instantaneamente.
Eusébio, de quem o beneditino Ruinart extraiu esse conto, devia respeitar um pouco mais os verdadeiros milagres operados no Velho e Novo Testamento (que ninguém terá o desplante de pôr em dúvida) e não enxertar-lhes histórias tão suspeitas, que podem escandalizar os simples.
Essa última perseguição não se estendeu a todo o império. Havia então na Inglaterra uns brotos de cristianismo, os quais se eclipsaram incontinenti para logo pôr a cabecinha de fora sob os reis saxões. Inçadas de cristãos estavam as Gálias meridionais e a Espanha. Muito os protegeu em todas essas províncias o césar Constâncio Cloro. Teve até uma concubina cristã: a mãe de Constantino, conhecida por Sta. Helena. Porque o fato é que nunca se provou que fossem casados, e efetivamente, ao esposar a filha de Maximiano Hércules, em 292, Constâncio recambiou-a. Helena, contudo, conservara sobre ele grande ascendência, inspirando-lhe profunda afeição a nossa santa religião.
Preparou a divina Providência, por vias que mais parecem humanas que divinas, o triunfo de sua igreja. Constâncio Cloro morreu no ano 306, em York, Inglaterra, quando os rebentos que tivera da filha de um césar mal se haviam emancipado dos cueiros, não podendo portanto candidatar-se ao trono. Fez-se Constantino eleger em York por cinco ou seis mil soldados, alemães, gauleses e ingleses na maior parte. Nada augurava que semelhante eleição, realizada sem consentimento de Roma, do senado e dos exércitos, pudesse prevalecer. Deus, não obstante, deu-lhe a vitória sobre Maxêncio, eleito em Roma, e por fim desembaraçou-o de todos os rivais. De tudo isso depreende-se que não o tornara indigno dos favores do céu o haver assassinado todos aqueles que dele se aproximaram, a própria mulher e o próprio filho.
Impossível duvidar do que a respeito relata Zósimo. Diz que, mordido de remorsos depois de tantos crimes, Constantino perguntou aos pontífices do império se ainda havia expiação possível para ele, ao que lhe responderam não conhecer. Verdade é que também não a houvera para Nero, que não ousara assistir aos sacros mistérios na Grécia. Estavam em voga, entretanto, os taurobólios, e seria difícil crer que um imperador que tudo podia não encontrasse um padre que lhe concedesse sacrifícios expiatórios. Menos crível ainda será que, absorvido pela guerra, sua ambição, seus projetos e rodeado de bajuladores, tivesse Constantino tempo para sentir remorsos. Acrescenta Zósimo que um padre egípcio vindo da Espanha, que tinha acesso a sua porta, prometeu-lhe a expiação de todos os seus crimes dentro da religião cristã. Desconfia-se tratar-se de Ózio, bispo de Córdova.
Seja como for, Constantino comungou com os cristãos, se bem nunca tivesse sido catecúmeno, e reservou o batismo para a hora da morte. Mandou construir a cidade de Constantinopla, que se tornou centro do império e da religião cristã. Então a igreja tomou uma forma augusta.
Note-se que desde o ano 314, antes de Constantino fixar residência em sua nova cidade, os que haviam perseguido os cristãos foram por estes punidos de suas crueldades. Os cristãos lançaram a mulher de Maximiano ao Oronte, degolaram todos os seus parentes e trucidaram no Egito e Palestina os magistrados que mais abertamente tinham se declarado contra o cristianismo. Identificadas a viúva e a filha de Diocleciano, que se haviam refugiado em Tessalônica, atiraram-nas ao mar. Seria de desejar dessem os cristãos menos ouvidos ao espírito de vingança. Mas quis Deus, que castiga segundo a sua justiça, que as mãos dos cristãos se tingissem do sangue de seus perseguidores apenas as tivessem desvencilhadas.
Convocou, reuniu Constantino em Nicéia, em frente a Constantinopla, o primeiro concílio ecumênico, presidido por Ózio. Lá se decidiu a magna questão que agitava a igreja, referente à divindade de Jesus Cristo.
Uns esposavam a opinião de Orígenes, que diz no sexto capítulo contra Celso: “Endereçamos as nossas preces a Deus por Jesus, que está entre as naturezas criadas e a natureza incriada, que nos transmite a graça de seu pai e, na qualidade de pontífice nosso, depõe a Deus as nossas orações”. Estribavam-se outrossim em diversos passos de S. Paulo, alguns dos quais transcrevemos páginas atrás. Sobretudo arrimavam-se a estas palavras de Cristo: “Meu pai é maior que eu”. Viam em Jesus o primogênito da criação, a mais pura emanação do Ser Supremo, mas não Deus precisamente.
Outros, ortodoxos, traziam à luz argumentos mais conformes à divindade eterna de Jesus, como este: “Meu pai e eu somos a mesma coisa” Palavras que seus adversários interpretavam como significando: “Meu pai e eu temos o mesmo desígnio, a mesma vontade. Não tenho outros desejos senão os de meu pai”. Capitaneavam os ortodoxos primeiro Alexandre, bispo de Alexandria, e depois Atanásio. No partido contrário alinhavam-se Eusébio, bispo de Nicomedia, o padre Ario e mais dezessete bispos e numerosos padres. Logo de saída azedou-se a disputa por haver Alexandre tratado de anticristos seus adversários.
Enfim, ao cabo de muita discussão assim se pronunciou o Espírito Santo no concílio pela boca de duzentos e noventa e nove bispos contra dezoito: “Jesus é o filho único de Deus, gerado do Pai, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, luz da luz, vero Deus de vero Deus, consubstancial ao Pai. Cremos igualmente no Espírito Santo, etc.” Foi esta a fórmula do concílio. Vê-se pelo exemplo o quanto prevaleciam os bispos sobre os simples padres. Dois mil membros da segunda ordem perfilhavam o parecer de Ario, segundo relação de dois patriarcas de Alexandria que escreveram a crônica dessa cidade em árabe. Ano foi exilado por Constantino. Logo o foi também Atanásio, e Ario de novo chamado a Constantinopla. Porém tão fervorosamente pediu Macário a Deus que o fizesse morrer antes de entrar na catedral que foi atendido. Faleceu Ario a caminho da igreja, no ano 330. Em 337 finou-se Constantino. Entregou seu testamento a um padre ariano e morreu nos braços do chefe dos arianos, Eusébio, bispo de Nicomedia, só se batizando à hora da morte. Deixou a igreja triunfante, embora dividida.
Tremenda guerra estalou entre os partidários de Atanásio e os de Eusébio, e o chamado arianismo vigorou longo tempo em todas as províncias do império.
Juliano o filósofo, cognominado o Apóstata, tentou pôr cobro a tais divisões, porém em vão.
O segundo concílio geral reuniu-se em Constantinopla, em 381. Esclareceu-se então o que o concílio de Nicéia não julgara a propósito dizer sobre o Espírito Santo, e acrescentou-se à fórmula niceana que “O Espírito Santo é senhor vivificante procedente do Pai, e adorado e glorificado como o Pai e o Filho”.
Só no século IX estatuiu gradativamente a igreja latina proceder o Espírito Santo do Pai e do Filho.
Em 431 o terceiro concílio geral realizado em Éfeso resolveu que Maria foi de fato mãe de Deus, e que Jesus tinha duas naturezas e uma pessoa. Querendo Nestório, bispo de Constantinopla, que a Santa Virgem fosse chamada mãe de Cristo, declarou-o judas o concílio.
Confirmou a dualidade de naturezas de Cristo o concílio de Calcedônia.
Refiro-me a lume de palha aos séculos subsequentes por sobejamente conhecidos. Infelizmente todas essas disputas eram pomo de guerras, de forma que volta e meia a igreja se via obrigada a combater. Aprouve a Deus, a fim de provar a paciência dos fiéis, que no século IX gregos e latinos rompessem definitivamente. Aprouve-lhe ainda que se formassem no Ocidente vinte e nove cismas sangrentos para o púlpito de Roma.
Entretanto quase toda a igreja grega e toda a igreja da África foram avassaladas pelos árabes, em seguida pelos turcos, os quais erigiram a igreja de Mafoma por sobre as ruínas da de Cristo. A igreja romana subsistiu, porém, manchada de sangue por mais de seiscentos anos de discórdia entre o império do Oriente e o sacerdócio. Tornaram-na até mais poderosa essas dissensões. Bispos e abades na Alemanha transformaram-se em príncipes, e paulatinamente os papas investiram-se de domínio absoluto em Roma e numa região de cem léguas. Assim experimentou Deus sua igreja por humilhações, tumultos e esplendor.
Ao descambar do século XVI a igreja latina perdeu metade da Alemanha, a Dinamarca, Suécia, Inglaterra, Escócia, Irlanda, Suíça e Holanda. Territorialmente essas perdas foram vantajosamente compensadas pelas conquistas espanholas na América. Não, porém, quanto ao número de súditos.
Para compensar o desmembramento da Ásia Menor, Síria, Grécia, Egito, África, Rússia e as outras nações de que falamos, parece que a Divina Providência lhe reservava o Japão, Siam, Índia e China. S. Francisco Xavier, que levou o Santo Evangelho às Índias Orientais e ao Japão, quando lá foram em busca de mercadorias os portugueses, fez inúmeros milagres, atestados todos pelos RR. PP. jesuítas. Dizem até que ressuscitou nove mortos. Na Flor dos Santos abate o R. P. Ribadeneira esse número para quatro, o que aliás já é bastante. Quis a Providência que em menos de cem anos milhares de católicos romanos enxameassem as ilhas do Japão. Porém o diabo semeou seu joio em meio da boa semente. Tramaram os cristãos uma conjuração acompanhada de uma guerra civil, em que foram totalmente exterminados (1638). Os japoneses fecharam as portas do país a todos os estrangeiros, salvo aos holandeses, em quem viam mercadores e não cristãos, mas que ainda assim foram obrigados a espezinhar a cruz para obter permissão de vender suas mercancias na prisão onde os trancafiaram logo que puseram pé em Nagasaqui.
Recentemente a China proscreveu a religião católica, apostólica e romana, bem que com menos crueldade. Em verdade os jesuítas não ressuscitaram mortos na corte de Pequim. Contentaram-se em ensinar astronomia, fundir canhões e ser mandarins. Suas intempestivas contendas com dominicanos e outros de tal forma escandalizaram o grande imperador Iong-tching que este príncipe, que era a justiça e a bondade em pessoa, teve a cegueira de proibir em seu estado o ensino da nossa santa religião, no seio da qual nem os próprios missionários viviam em paz. Expulsou-os paternalmente, fornecendo-lhes meios de subsistência e veículos até os confins de seu império.
Toda a Ásia, toda a África, metade da Europa, todas as colônias inglesas e holandesas da América, todas as tribos americanas não domadas, todas as terras austrais, que constituem um quinto do globo, permanecem presa do demônio, para provar esta santa sentença: “Muitos são os chamados, mas poucos os eleitos”. Se há na terra um bilhão e seiscentos milhões de homens, como pretendem os entendidos, cerca de sessenta milhões pertencerão à santa igreja romana católica universal: ou seja, mais da vigésima sexta parte da população do mundo conhecido.
CRÍTICA

Não pretendo falar dessa crítica de escoliastas, que se limita a substituir por outra pior uma frase de um escritor antigo que antes se entendia muito bem. Não me refiro às críticas de lei que, na medida das forças humanas, devassaram os mais recônditos escaninhos da história e da filosofia antigas. Viso às criticas que descambam para a sátira.
Um amador de letras lia certa vez Tasso comigo. Antolhou-se-lhe esta estância:

Chiama gli abitator dell’ombre eterne
il rauco suon della tartarea tromba.
Treman le spaziose atre caverne;
e l’aer cieco a quel rumor rimbomba:
nè sì stridendo mai dalle superne
regioni dei cielo il folgor piomba;
nè sì scossa giammai trema la terra,
quando i vapori in sen gravida serra. (25)

Leu em seguida ao acaso várias estâncias dessa força e harmonia.
— Ora! – exclamou – então é isso o que o seu Boileau chama farfalhice? Então é assim que pretende rebaixar um grande homem que viveu cem anos antes dele para melhor entronar outro grande homem que viveu dezesseis séculos antes, e que teria ele próprio rendido justiça a Tasso?
Console-se. Vejamos as óperas de Quinault.
Logo à abertura do livro deparou-se-nos com que nos abespinharmos com a crítica. Dando com os olhos na tradução do admirável poema Armida, lemos:

Sidonie
La haine est affreuse et barbare,
l’amour contraint les cours dont il s’empare
à souffrir des maux rigoureux.
Si votre sort est en votre puissance,
faltes choix de l’indifférence:
elie assure un repos heureux.

Armide
Non, non, il ne m’est pas possible
de passer de mon trouble en un état paisible;
mon coeur ne se peut plus calmer;
Renaud m’offense trop, il n’est que trop aimable;
c’est pour moi désormais un choix indispensable
de le haïr ou de l’aimer.

Lemos de fio a pavio a peça Armida, na qual o gênio de Tasso recebe novos encantos das mãos de Quinault.
— Veja só, – observo a meu amigo – no entanto é este Quinault que Boileau sempre se esforçou por fazer ver como o mais reles escrevinhador. Chegou a meter na cabeça de Luís XIV que esse escritor gracioso, comovente, patético, elegante, outro mérito não tinha além do que tomava de empréstimo ao músico Lulli.
— Compreende-se. Boileau não invejava o músico, porém invejava o poeta. Que pensar de um homem que, para rimar um verso em aut, denigre ora Boursault, ora Hénault, ora Quinault, conforme esteja bem ou mal com esses senhores?
“Mas, para que não se arrefece a sua repugnância da injustiça, ponha a cabeça à janela, veja aquela bela fachada do Louvre, por que se imortalizou Perrault. Este homem de invulgar habilidade era irmão de um acadêmico sapientíssimo, com quem Boileau tivera uma disputa eis o quanto bastou para levar a tacha de arquiteto ignorante.”
Depois de breve sisma, prossegue meu amigo com um Suspiro:
— Assim é a natureza humana – Em suas Mémoires, acha o duque de Sully de inquinar de maus ministros o cardeal de Ossat e o secretário de estado Villeroi Tudo fez Louvois para deslustrar o grande Colbert.
— Não se agatanhavam pessoalmente – reparo. – Trata-se de uma estupidez restrita quase exclusivamente à literatura, à cavilação e à teologia.
“Tivemos um homem de mérito: Lamotte, que compôs estâncias belíssimas:

Quelque fois au feu qui la charme
résiste une jeune beauté,
et contre elle-même elle s’arme
d’une pénible fermeté.
Hélas! cette contrainte extrême
la prive du vice qu’elle aime,
pour fuir la honte qu’elle hait.
La sévérité n’est que faste,
et l’honneur de passer pour chaste
la résout à l’être en effet.

En vain ce sévère stoïque,
sous mille défauts abattu,
se vante d’une âme héroïque
toute vouée à la vertu:
ce n’est point la vertu qu’il aime;
mais son coeur, ivre de lui-même,
voudrait usurper les autels,
et par sa sagesse frivole
il ne veut que parer l’idole
qu’il offre an culte des mortels.

Les champs de Pharsale et d’Arbelle
ont vu triompher deux vainqueurs,
l’un et l’autre digne modèle
que se proposent les grands coeurs.
Mais le succès a fait leur gloire;
et, si te sceau de la victoire
n’eût consacré ces demi-dieux,
Alexandre, aux yeux du vulgaire,
n’aurasit été qu’un téméraire,
et César qu’un seditieux.

“Este autor” – continuo – “foi um sábio que por mais de uma vez emprestou o encanto dos versos à filosofia. Escrevesse sempre estâncias desse quilate e teria sido o maior dos poetas líricos. Sem embargo, foi justamente quando produzia desses primores que dele disse um contemporâneo:

Um certo pato, caça de galinheiro.

“Em outro lugar:

De seus versos a enfadonha – beleza.

“Em outro:

...Só vejo um senão: falta a essas odes descavalgar o verso a Quinault para atingir a perfeição.

“E, nesse ciscar de imperfeições, em tudo encontra secura e quebra de harmonia.

“Quer ver as odes que anos depois escreveu esse mesmo censor que julgava Lamotte de cátedra e o difamava como inimigo? Leia:

Cette influence souveraine
n’est pour lui qu’une ilustre chaîne
qui l’attache au bonheur d’autrui;
tous les brillants qui l’embellisent,
tons les talents qui l’ennoblissent,
sont en lui, mais non pas à lui.

Il n’est rien que te temps n’absorbe, ne dévore,
et les faits qu’on ignore
sont bien peu différents des faits non avenus.

La bonté qui brille en elle
de ses charmes les plus doux
est une image de celle
qu’elle voit briller en vous.
Et, par vous seule enrichie,
sa politesse, affranchie
des moindres obscurités
est la lueur réfléchie
de vos sublimes clartés.

Ils ont vu par la bonne foi
de leurs peuples troublés d’effroi
la crainte heureusement déçue,
et déracinée à jamais
la haine si souvent reçue
en survivance de la paix.

Dévoile à ma vue empressée
ces déités d’adoption,
synonymes de la pensée,
symboles de l’abstraction.

N’est ce pas une fortune,
quand d’une charge commune
deux moities portent le faix,
que la moindre le réclame,
et que du bonheur de l’âme
le corps seul fasse les frais?

— Não era preciso – convém meu judicioso amante das letras – dar coisas tão detestáveis para modelo àqueles a quem tão azedamente criticava. Antes deixasse em paz seu adversário com seu mérito e ficasse ele com o que tivesse. Mas, que quer você? O genus irritabile vatum é doença da mesma bilis que o atormentava outrora. O público perdoa essas tacanhezas às pessoas de talento porque não quer senão se divertir. Ele vê, numa alegoria intitulada Plutão, juizes condenados a ser esfolados e a sentar-se nos infernos em um banco coberto com as próprias peles em vez de flores de lis. Pouco importa ao leitor que os juizes o mereçam ou não, que tenha ou não razão o autor que os cita perante Plutão. Lê esses versos unicamente por prazer. Se lhe agradam, não quer mais. Se lhe desagradam, põe de lado a alegoria e não daria um passo para fazer confirmar ou cassar a sentença.
“As inimitáveis tragédias de Racine foram todas criticadas, e pessimamente: porque as criticaram rivais. Certo, os artistas são juizes de arte competentes, porém quase sempre lhes falta integridade.
“Excelente crítico seria o artista senhor de bom cabedal de ciência e de bom gosto, isento de prejuízos e inveja. O que é difícil encontrar.”
DESTINO

De todos os livros que até nós chegaram, o mais antigo é Homero. É em Homero que se nos deparam os costumes da antigüidade profana, os heróis e deuses toscamente talhados à imagem do homem. Em Homero também encontramos os embriões da filosofia e sobretudo a idéia do destino, que é senhor dos deuses como são os deuses senhores dos homens.
Debalde quer Júpiter salvar Heitor. Consulta os destinos, pesando numa balança os destinos de Heitor e Aquiles: diz a sorte que o troiano será irrevogavelmente morto pelo grego, e nada pode opor-lhe o soberano dos deuses. Apolo, o gênio guardião de Heitor, é então obrigado a abandoná-lo (26). Não que Homero não seja pródigo de idéias opostas, consoante o privilégio da antigüidade. Mas enfim é o primeiro em que aparece a noção do destino. Devia estar, pois, muito em voga em seu tempo.
Os fariseus, na pequena nação judaica, só conceberam o destino muitos séculos depois, porquanto, embora tenham sido os primeiros judeus letrados, eram muito novos em relação aos gregos. Mesclaram em Alexandria parte dos dogmas dos estóicos às antigas idéias judaicas. Chega a pretender S. Jerônimo não ser sua seita muito anterior à nossa era. Os filósofos sempre prescindiram de Homero e dos fariseus para se persuadirem de que tudo está sujeito a leis imutáveis, tudo está determinado, tudo é efeito necessário.
Ou o mundo subsiste pela própria natureza, pelas leis físicas, ou formou-o um Ser Supremo conforme supremas leis. Num caso como noutro as leis são imutáveis e tudo é necessário. Os corpos graves tendem para o centro da terra, não podendo tender a repousar no ar. Pereiras nunca poderiam dar ananases. O instinto de um espanhol não pode ser o instinto de um austríaco Tudo se acha ordenado, engranzado e limitado.
Não pode o homem ter mais que certo número de dentes, cabelos e idéias. Tempo vem em que inevitavelmente perde os dentes, os cabelos e as idéias
Contraditório seria que ontem não fosse ontem e hoje não fosse hoje. Tão contraditório como se o que há de ser pudesse deixar de sê-lo.
Se pudesses torcer o destino de uma mosca, nada te impediria de traçar o destino de todas as outras moscas, de todos os outros animais, de todos os homens, de toda a natureza. Enfim, serias mais poderoso que Deus.
Dizem os cretinos: O médico arrancou minha tia aos braços da morte, fê-la viver dez anos mais do que deveria viver. Outra modalidade de imbecis – os capazes, – sentenciam: O homem prudente forja o próprio destino.

Nullum numen abest, si sit prudentia, sed te
nos facimus, fortuna, deam, coeloque locamus.

Asseveram profundos políticos que se oito dias antes que se decapitasse Carlos I se tivessem assassinado Cromwell, Ludlow, Ireton e uma dúzia de outros parlamentares, esse rei ainda podia ter vivido e morrer no leito. Têm razão. E poderiam acrescentar que se o mar houvesse tragado toda a Inglaterra esse monarca não teria morrido em um patíbulo junto a Whitehall, ou sala, branca. Porém as coisas estavam dispostas de maneira que Carlos teria irrevogavelmente o pescoço cortado.
Não resta dúvida que o cardeal de Ossat era mais prudente que um louco das Petites-Maisons. Mas não é evidente que os órgãos do sábio de Ossat não eram os mesmos que os de um desmiolado, da mesma forma como os de uma raposa diferem dos de um grou ou uma calhandra.
O médico salvou tua tia. Mas não contradisse a natureza: obedeceu-lhe. Claro que tua tia não podia deixar de nascer senão na cidade em que nasceu, em ocasião certa ter certa moléstia, que o médico não podia estar alhures senão na cidade em que estava, que tua tia forçosamente o chamaria a ele, o qual necessariamente lhe prescreveria os remédios que a curaram.
Crê um camponês haver geado em seu campo por acaso. Mas um filósofo sabe que não existe acaso e que era impossível, na constituição deste mundo, que precisamente naquele dia não geasse precisamente naquele lugar.
Há pessoas que, aterrorizadas ante essa verdade, só concordam pela metade, como devedores que oferecem metade aos credores e pedem mora para a outra metade. Existem, dizem elas, acontecimentos necessários e acontecimentos não necessários. Engraçado um mundo metade em ordem metade em desordem. Que parte do que acontece precisava acontecer, outra não. Basta chegar-se-lhe um pouco mais o nariz para ver ser absurda semelhante teoria. Mas há muitos indivíduos que nasceram para raciocinar mal, outros para não raciocinar .e outros para perseguir os que raciocinam.
Perguntareis:
— E a liberdade?
Não vos entendo. Não sei o que seja essa liberdade de que falais. Há tanto tempo discutis acerca de sua natureza que seguramente não a conheceis. Se quiserdes, ou melhor, se puderdes examinar calmamente comigo o que se deve entender por essa palavra, saltai à letra L.
DEUS

Imperante Arcádio, Logômacos, teologal de Constantinopla, empreendeu uma viagem à Cítia, e deteve-se ao pé do Cáucaso, nos férteis plainos de Zefirim, nos términos da Cólchida. Estava o bom velho Dondindaque em sua ampla sala baixa, entre seu grande aprisco e a vasta granja. Estava ajoelhado em companhia da mulher, dos cinco filhos e cinco filhas, seus pais e seus criados, e cantavam os louvores a Deus após ligeiro repasto.
— Que fazes, idólatra? – perguntou-lhe Logômacos.
— Não sou idólatra – retorquiu Dondindaque.
— Claro que o és, pois és cita e não grego. Que cantavas em tua bárbara geringonça da Cítia I
— Todas as línguas soam da mesma forma aos ouvidos de Deus. Cantávamo-lhe os louvores.
— Eis uma coisa extraordinária! Uma família cita que ora a Deus sem ter sido instruída por nós!
Seguiu-se um diálogo entre o grego Logômacos e o cita Dondindaque, pois o teologal sabia um pouco de cita e o outro um pouco de grego. Encontrou-se esse diálogo num manuscrito conservado na biblioteca de Constantinopla
Logômacos
Vejamos se sabes teu catecismo. Por que oras a Deus?
Dondindaque
Justo é que adoremos o Ser Supremo que tudo nos deu.
Logômacos
Oh! Para um bárbaro não está mal. E que lhe pedes? Dondindaque
Agradeço-lhe os bens de que gozo e os males com que lhe apraz provar-me. Abstenho-me porém de pedir-lhe seja o que for. Melhor que nós sabe ele o que nos falta. Demais poderia dar-se que quando eu pedisse bom tempo meu vizinho pedisse chuva.
Logômacos
Ah! Logo vi que ia dizer alguma asneira. Passemos a plano mais elevado. Bárbaro, quem te disse que Deus existe?
Dondindaque
Toda a natureza.
Logômacos
Não basta. Que idéia tens do Ser Supremo?
Dondindaque
Que é o meu criador, meu soberano, que me recompensará quando praticar o bem e me castigará quando cometer o mal.
Logômacos
Que frioleiras! Vamos ao essencial – Deus é infinito secundum quid ou segundo a essência?
Dondindaque
Não vos entendo.
Logômacos
Sujeito tapado! Deus está algures ou ao mesmo tempo em tudo e fora de tudo?
Dondindaque
Não sei... Como quiserdes.
Logômacos
Ignorante! Pode Deus demover o acontecido? Pode fazer que um bastão não tenha duas pontes? Como verá o futuro: como futuro ou como presente? Como faz para tirar o ser do nada e para aniquilar o ser?
Dondindaque
Tais coisas nunca me passaram pela cabeça.
Logômacos
Que sujeito bronco! Bem, vejo que preciso baixar a trave. Dize-me, meu amigo, achas que a matéria possa ser eterna?
Dondindaque
Que me importa que seja eterna ou não? Eu, posso afirmar que não o sou. De qualquer forma, Deus é o meu senhor. Deu-me a noção de justiça, devo segui-la. Não quero ser filósofo, quero ser homem.
Logômacos
São o diabo, essas cabeças duras! Vamos aos poucos: Que é Deus?
Dondindaque
Meu soberano, meu juiz, meu pai.
Logômacos
Não é isso o que pergunto. Qual é sua natureza?
Dondindaque
Ser poderoso e bom.
Logômacos
Mas é corporal ou espiritual?
Dondindaque
Como quereis que o saiba?
Logômacos
Arre! Não sabes o que é um espírito?
Dondindaque
Nem imagino: de que me serviria isso? Tornar-me-ia acaso mais justo? Seria melhor marido, melhor pai, melhor amo, melhor cidadão?
Logômacos
É absolutamente necessário ensinar-te o que seja espírito. Escuta: é, é, é... Bem, fica para outra ocasião.
Dondindaque
Muito receio que me fôsseis dizer o que ele não é. Permiti-me fazer-vos a meu turno uma pergunta. Vi há muito um de vossos templos: por que motivo pintais Deus com uma longa barba?
Logômacos
É questão muito complexa, que requer instruções preliminares.
Dondindaque
Antes de receber vossas instruções, vou contar-vos o que me aconteceu certo dia. Eu acabava de fazer construir uma privada no fim de meu jardim, quando ouvi uma toupeira conversando com um besouro:
— Eis uma bela fábrica! – dizia a toupeira. – Deve ser uma toupeira bem poderosa o autor dessa obra.
— Gracejais – respondeu o besouro. – Bem sabeis que foi um besouro, um besouro genial o arquiteto desse edifício.
Desde então resolvi nunca discutir.
ESCALA DOS SERES

A primeira vez em que li Platão e observei essa gradação de seres desde o mais ínfimo átomo até o Ser Supremo, essa escala impressionou-me fundamente. Considerando-a porém atentamente, esvaeceu-se o grande fantasma, como outrora fugiam as aparições ao canto do galo.
De princípio compraz-se a imaginação em ver a transição imperceptível da matéria bruta à matéria organizada, das plantas aos zoófitos, dos zoófitos aos animais, dos animais ao homem, do homem aos gênios, dos gênios revestidos de corpo aéreo a substâncias imateriais, e enfim mil ordens diferentes dessas substâncias que, de belezas a perfeições, se escadeiam até Deus. Essa hierarquia é muito do gosto dos ingênuos, que vêem o papa e seus cardeais seguidos dos arcebispos e bispos, após quem vêm os curas, os vigários, os simples padres, os diáconos, os subdiáconos, os frades e finalmente, fechando a coluna, os capuchinhos.
Porém há um pouco mais de distância entre Deus e suas mais perfeitas criaturas que entre o santo padre e o decano do sacro colégio. O decano pode vir a ser papa, enquanto o mais perfeito dos gênios criados pelo Ser Supremo jamais poderá vir a ser Deus. Entre Deus e ele há o infinito.
Tão pouco entre os animais e vegetais se verifica essa pretensa escala ou gradação. Prova está em existirem plantas e animais extintos. Já não temos múrices. Era proibido entre os judeus comer o grifo e o ixião, espécies hoje desaparecidas, diga o que disser o Sr. Bochart. Onde então escala?
Ainda que não se houvessem extinto algumas espécies, patente é que isso pode acontecer. Os leões, os rinocerontes começam a rarear.
Muito provavelmente existiram raças humanas hoje desaparecidas. Quero crer contudo que todas hajam subsistido, da mesma forma como os brancos, negros, cafres, a quem a natureza deu um avental da própria pele, caindo do ventre ao meio das coxas; os samoiedas, cujas mulheres têm um mamilo de belo ébano, etc.
Não há visivelmente um vazio entre o macaco e o homem? Não é fácil imaginar um bípede implume que seria inteligente sem usar da palavra nem ter o nosso aspecto, que poderíamos domesticar, que correspondesse aos nossos macacos e nos servisse? E entre essa nova espécie e o homem não poderíamos conceber outras?
Acima do homem colocais no céu, vós, divino Platão, uma série de substâncias celestes. Cremos nós outros em algumas dessas substâncias porque no-lo ensina a fé. Mas vós, que razão tendes para crê-las? Até parece que não falastes ao gênio de Sócrates, e que o simplório Heres, expressamente ressurreto para vos pôr ao corrente dos segredos do outro mundo, nada vos tenha ensinado acerca de tais substâncias.
A pretensa escala não é menos descontínua no mundo sensível.
Que gradação – pergunto – há entre os vossos planetas? A Lua é quarenta vezes menor que o nosso globo. Vênus é quase do tamanho da Terra. Mercúrio descreve uma elipse muito diferente da circunferência percorrida por Vênus e é vinte e sete vezes menor que nós. O Sol é um milhão de vezes maior que o planeta em que vivemos, Marte cinco vezes menor. Marte completa seu giro em dois anos, Júpiter, seu vizinho, em doze, Saturno, o mais afastado de todos, conquanto menor que Júpiter, em trinta. Onde a tal gradação?
Depois, como quereis que em imensos espaços vazios haja uma cadeia que tudo ligue? Se alguma cadeia existe, é certamente a descoberta por Newton. É ela que faz todos os globos do mundo planetário gravitarem uns em torno dos outros no vácuo infinito.
Admirado Platão, vós não contastes mais que fábulas! Na ilha de Cassitérides, onde em vosso tempo os homens viviam completamente nus, nasceu um filósofo que ensinou aos homens verdades tão grandes quanto pueris eram vossos devaneios.
ESTADOS, GOVERNOS

Qual o melhor? – Até o presente não conheci quem não tenha governado algum estado. Não falo dos ministros que governam efetivamente, uns dois ou três anos, outros seis meses, outros seis semanas. Falo de todos esses senhores que, à hora das refeições ou em seus gabinetes, expõem seu sistema de governo, reformando os exércitos, a igreja, a magistratura e as finanças.
O abade de Bourzeis meteu-se a governar a França pelo ano de 1645, sob o nome do cardeal de Richelieu, e escreveu seu Testamento Político, no qual procurou arrolar a nobreza na cavalaria por três anos, fazer pagar a talha aos tribunais de contas e aos parlamentos e privar o rei do produto dos seus impostos sobre o consumo. Afirma ele que, para entrar em campanha com cinqüenta mil homens, por economia é preciso levar cem mil. Assevera que só a Provença tem mais belos portas de mar que a Espanha e Itália juntas
O abade de Bourzeis não tinha viajado. Aliás sua viagem acha-se repleta de anacronismos e erros. Faz o cardeal de Richelieu assinar como nunca assinou e falar como nunca falou. E gasta um capítulo inteiro para dizer que a razão deve ser a pauta do estado, e a se esforçar por provar essa descoberta. Essa obra das trevas, esse bastardo do abade de Bourzeis passou muito tempo por filho legítimo do cardeal de Richelieu. E todos os acadêmicos, em seus discursos de recepção, não deixavam de louvar desmedidamente essa obra prima de política.
O senhor Gatien de Courtilz, vendo o extraordinário sucesso do Testamento Político de Richelieu, fez imprimir em Haia o Testamento de Colbert, com uma pomposa carta do senhor Colbert ao rei. Está claro que se esse ministro tivesse feito semelhante testamento, seria preciso interdizê-lo; entretanto, esse livro foi citado por alguns autores.
Outro velhaco cujo nome se ignora partejou o Testamento de Louvois, pior ainda, se possível, que o de Colbert. E um abade de Chevremont também fez testar Carlos, duque de Lorena (27).
O senhor de Bois Guillebert, autor do Détail de la France, impresso em 1695, apresenta o projeto inexeqüível do dízimo real sob o nome do marechal de Vauban (28).
Um louco sem eira nem beira chamado La Jonchêre escreveu em 1720 um projeto de finança em 4 volumes. E alguns parvos citaram essa produção como obra de La Jonchêre, o tesoureiro geral, imaginando que um tesoureiro não pode escrever um mau livro de finanças.
Mas é preciso convir em que homens avisados, dignos sem dúvida de governar, têm escrito sobre a administração dos estados, seja na França, na Espanha ou na Inglaterra. Seus livros têm feito muito bem: não porque hajam corrigido os ministros então no governo, já que um ministro não se corrige de modo algum nem pode ser corrigido: é árvore já muito crescida; basta de instruções, basta de conselhos; escasseia-lhe tempo para os ouvir, arrasta-o a corrente dos negócios. Mas esses bons livros formam a juventude destinada aos cargos. Formam os príncipes, e a segunda geração é instruída.
Ultimamente tem sido examinado de perto o forte e o fraco dos governos. Dizei-me, vós que haveis viajado, vivestes e vistes, sob que espécie de governo desejaríeis ter nascido? Compreendo que um grande proprietário de terra, na França, não desgostaria de haver nascido na Alemanha: seria soberano em vez de vassalo. A um par de França muito agradariam os privilégios do pariato inglês: seria legislador.
O magistrado e o financeiro achar-se-iam melhor em França que alhures.
Mas que pátria escolheria um homem sábio, livre, um homem de fortuna medíocre e sem preconceitos?
Um membro do conselho de Pondichéry, senhor de sólida cultura, voltou à Europa por terra em companhia de um brâmane mais instruído do que o comum dos brâmanes.
— Que tal achais o governo do grão mogol? – perguntou o conselheiro.
— Abominável – respondeu o brâmane. – Como quereis que um estado seja bem governado pelos tártaros? Nossos rajas, nossos omrás, nossos nababos estão muito contentes; mas os cidadãos muito ao contrário, e milhões de cidadãos são alguma coisa.
O conselheiro e o brâmane percorreram, conversando, toda a alta Ásia.
— Cheguei a uma conclusão – disse o brâmane: – que não existe sequer uma república em toda esta vasta parte do mundo.
— Houve outrora a de Tiro, – retrucou o conselheiro – mas não durou muito. Houve ainda outra, perto da Arábia Pétrea, num recanto denominado Palestina, se é que se pode honrar com o nome de república uma horda de ladrões e de onzeneiros governados ora por juizes, ora por espécies de reis, ora por grandes pontífices, escravizados sete ou oito vezes e enfim expulsos do país que usurparam.
— Julgo, – disse o brâmane – que não deve haver sobre a terra senão pouquíssimas repúblicas. Raramente são os homens dignos de se governar por si mesmos. Tal felicidade não deve pertencer senão a povos pequenos, que se insulem em ilhas ou entre montanhas, como coelhos a se esconderem dos carnívoros. Mas sempre acabam sendo descobertos e devorados.
Quando os dois viajantes chegaram à Ásia Menor, perguntou o conselheiro ao brâmane:
— Acreditaríeis ter existido uma república formada num canto da Itália, que durou mais de quinhentos anos e possuiu esta Ásia Menor, Ásia, África, Grécia, Gálias, Espanha e toda a Itália?
— Então, cedo se transformou em monarquia? – perguntou o brâmane.
— Adivinhastes – respondeu o outro; – porém essa monarquia caiu e vivemos a fazer empoladas dissertações para encontrar a causa de sua decadência.
— Perdeis vosso tempo inutilmente, – disse o hindu: – esse império caiu porque existia. Tudo cai. Espero que assim aconteça também ao império da Mongólia.
— A propósito – disse o europeu. Julgais ser necessário mais honra num estado despótico e mais virtude numa república? – Tendo feito com que se lhe explicasse o que se entende por honra, respondeu o hindu ser de opinião que ela era mais necessária numa república, e a virtude a mais precisa num estado monárquico.
— Porque – explicou – um homem que pretenda ser eleito pelo povo não o será se não for honrado. Ao passo que na corte poderá obter facilmente um cargo, segundo a máxima de um grande príncipe, que disse que para o conseguir não deve o cortesão ter honra nem humor. Com respeito à virtude, é preciso te-la muita numa corte para ousar dizer a verdade. O homem virtuoso está bem mais à vontade na república, por não precisar bajular ninguém.
— Acreditais – interrogou o europeu – que as leis e religiões sejam feitas para os climas assim como os agasalhos forrados para Moscou e os tecidos de gaza para Delí?
— Sim, sem dúvida – disse o brâmane. Todas as leis que concernem o físico são calculadas pelo meridiano em que se habita; para um alemão basta uma mulher, um persa precisa de três ou quatro. Da mesma natureza são os ritos da religião. Como desejaríeis que eu, se fosse cristão, dissesse a missa em minha província, onde não há pão nem vinho? Quanto aos dogmas, o caso é outro: o clima nada faz. Vossa religião não nasceu na Ásia, de onde foi expulsa? Não subsiste no Mar Báltico, onde era desconhecida?
— Em que estado, sob que domínio preferiríeis viver? – perguntou o conselheiro.
— Em qualquer parte que não a minha terra, – respondeu o companheiro – e encontrei muitos siameses, tonquineses, persas e turcos que diziam outro tanto.
—.Mas, – ainda uma vez disse o europeu – que estado escolheríeis? – Respondeu o brâmane:
— Aquele onde apenas se obedecesse às leis.
— É uma velha resposta, – argüiu o conselheiro.
— E não é má – disse o brâmane.
— Onde fica esse país? – perguntou o conselheiro.
— É de mister procurá-lo – respondeu o brâmane.
EZEQUIEL (DE)

De alguns passos singulares desse profeta e de alguns hábitos antigos
Sabe-se hoje muito bem que não se devem julgar os costumes antigos pelos modernos. Quem desejasse reformar a corte de Alcinos, na Odisséia, tomando como modelo a do grão turco ou a de Luís XIV, não seria bem recebido pelos sábios. Quem reprovasse a Virgílio o haver representado o rei Evandro coberto com uma pele de urso e acompanhado de dois cães para receber os embaixadores, seria um mau crítico.
Os costumes dos judeus de antanho são ainda mais diferentes dos nossos que aqueles do rei Alcinos, de Nausica, de sua filha e do bonacheirão Evandro.
Ezequiel, escravo dos caldeus, teve uma visão perto do ribeirão de Cobar, que se perde no Eufrates.
Não nos devemos admirar de que ele tenha visto animais de quatro faces e quatro asas, com pés de bezerro, nem das rodas que caminhavam por si mesmas e continham o espírito da vida: esses símbolos até agradam à imaginação. Mas vários críticos se revoltaram contra a ordem que lhe deu o Senhor de comer durante trezentos e noventa dias, pão de cevada, de frumento e de milho, coberto de excremento.
— Irra! – exclamou o profeta. – Minh’alma até hoje não tinha sido poluída.
Respondeu-lhe o Senhor:
— Pois bem, eu te darei estrume de boi em lugar de excrementos humanos, e tu comerás teu pão com esse estrume.
Visto não ser absolutamente de uso comer tais confeitos com o pão, a maioria dos homens acha essas ordens indignas da majestade divina. Entretanto, deve-se lembrar que o estrume de vaca e os diamantes do grão mogol são perfeitamente iguais, não só ante os olhos de um ser divino mas também aos do verdadeiro filósofo. Com respeito às razões que Deus poderia ter para impor ao profeta um tal almoço, não nos cabe procurá-las. Basta fazer ver que essas ordens, que nos parecem estranhas, não se afiguraram tais aos judeus.
É verdade que a sinagoga não permitia, no tempo de S. Jerônimo, a leitura de Ezequiel antes da idade de trinta anos. Mas isso porque no capítulo 18 ele diz que os filhos não arcarão com a iniqüidade dos pais e que já não se dirá: os pais comeram raízes verdes e os dentes dos filhos ficaram embotados.
Nesse ponto ele se achava em contradição com Moisés, que no capítulo 28 dos Números afirma que os filhos sofrem a iniqüidade dos pais até terceira e quarta geração.
Ezequiel, no capítulo 20, faz ainda dizer ao Senhor ter ele dado aos judeus preceitos que não são bons. Eis por que a sinagoga interdisse aos jovens uma leitura que poderia pôr em dúvida a irrefragabilidade das leis de Moisés.
Aos censores de nossos dias, ainda mais os surpreende o capítulo 26 de Ezequiel: eis como o profeta se arranja para fazer conhecer os crimes de Jerusalém. Ele apresenta o Senhor dizendo a uma moça:
“Quando nascestes, ainda não vos tinham cortado o cordão umbilical, ainda não éreis batizada, estáveis completamente nua, eu me apiedei de vós; depois crescestes, vosso seio se formou, vossas axilas cobriram-se de veios; eu passei, eu vos vi, eu compreendi que era o tempo dos amantes; eu cobri vossa ignomínia; estendi por sobre vós o meu manto; viestes a mim; eu vos lavei, perfumei, vesti bem e bem aqueci; dei-vos um chale de lã, braceletes, um colar; eu vos pus jóias no nariz, brincos nas orelhas e uma coroa na fronte, etc.
“Então, confiando em vossa beleza, fornicastes por vossa conta com todos os passantes... E trilhastes um mau caminho... e vos prostituístes até nas praças públicas e abristes as pernas a todos os passantes... e vos deitastes com os egípcios... e enfim pagastes amantes e lhes fizestes presentes a fim de que se deleitassem com outras moças. O provérbio é: Tal mãe, tal filha; e é isso que se diz de vós, etc.”
Ainda com maior indignação se insurgem contra o capítulo 28. Uma mãe tinha duas filhas que perderam muito cedo a virgindade; a maior chamava-se Oola e a menor Ooliba. “...Oola era louca pelos jovens senhores, magistrados, cavaleiros; deitou-se com egípcios desde a mais tenra mocidade... Ooliba, sua irmã, fornicou mais ainda com oficiais, magistrados e cavaleiros bem parecidos; descobriu sua vergonha e multiplicou suas fornicações. Procurou com arrebatamento os abraços daqueles cujo membro se parece com o de um asno e que expandem a sua semente como cavalos...”
Essas descrições que escandalizam tantos espíritos fracos não significam, entretanto, senão as iniqüidades de Jerusalém e de Samaria; as expressões que nos parecem livres não o eram então. A mesma franqueza aparece sem receio em mais de um ponto das Escrituras. Fala-se freqüentemente em abrir a vulva. Os termos de que elas se servem para explicar o contato de Booz com Rute, de Judas com sua nora, não são desonestos em hebreu, mas se-lo-iam em nossa língua.
Não se usa véu quando não se tem vergonha de sua nudez. Como é possível que se ruborizasse uma pessoa nos tempos passados ao ouvir falar dos órgãos genitais, quando era costume tocá-los àqueles a quem se fazia alguma promessa? Era um sinal de respeito, um símbolo de fidelidade, como outrora entre nós punham os senhores feudais suas mãos entre as dos seus senhores soberanos.
Traduzimos os testículos por coxa. Eliezer pousa a mão sobre a, coxa de Abraão; José pousa a mão sobre a coxa de Jacó. Esse costume era antiqüissimo no Egito. Os egípcios estavam tão longe de ligar à ignomínia coisas que nós não ousamos nem descobrir nem nomear, que conduziam em procissão uma grande figura do membro viril chamada phallum, para agradecer aos deuses a bondade demonstrada em fazer servir esse membro à propagação do gênero humano.
Todos esses fatos provam bem que nossos decoros não são os mesmos dos outros povos. Em que tempo houve entre os romanos maior polidez do que no século de Augusto? Entretanto, Horácio não tergiversou em dizer numa peça moral:
Nec vereor ne, dum futuo, vir rure recurrat(29).
Um homem que entre nós pronunciasse a palavra correspondente a futuo seria considerado um bêbado indecente; essa e várias outras palavras de que se servem Horácio e outros autores nos parecem ainda mais indecorosas do que as expressões de Ezequiel. Desfaçamo-nos de nossos preconceitos quando lermos autores antigos ou quando viajarmos por nações longínquas. A natureza é a mesma em toda parte e os costumes em toda parte diferentes.

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